Quando Albufeira queria ser a “Saint-Tropez portuguesa”
Nas ruas da praia dos pescadores, Manuel da Fonseca, na década de 60, encontra gente a expressar-se nas “mais desvairadas línguas”, em ambiente multicultural, “prestes a partirem alegremente para uma bela aventura”.
Quando o turismo ligado aos percursos da natureza ainda não estava na moda, Albufeira foi considerada um ícone nessa área. Nas margens da ribeira de Quarteira, o botânico e geógrafo alemão Heinrich Willkomm “descobriu um narciso único no mundo”, em 1846, a que deu o seu nome. A revelação é descrita no livro Albufeira Revisitada, editado pelo município. O investigador, incentivando à descoberta de paragens desconhecidas, lê-se, divulgou a notícia “para todo o planeta e Albufeira posicionou-se como um paraíso natural a descobrir”. O tal narciso terá sobrevivido, mas o seu paradeiro não é divulgado. A lagoa dos Salgados é outra das zonas húmidas de referência, onde nidificam 45 espécies de aves, mas não está a salvo. No espaço envolvente, projecta-se a construção de mais 4 mil camas turísticas.
A partir da chegada dos “camones”, nos anos de 1960, Albufeira não mais parou de crescer. As tascas viraram pubs e a “vila branca em mar azul” transforma-se na terra das mil e um noites de animação turística. O cantor Cliff Richard foi um dos muitos britânicos que se deixaram enamorar pela velha aldeia de pescadores, e fez-se “algarvio” de adopção. Na Guia, depois de aprender a comer frango assado com batatas fritas, o cantor veio a plantar vinha, e agora a música é outra — passou a vender recordações engarrafadas. O vinho que produz — Vida Nova, simbolicamente, representa a síntese de uma história de vida. “O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria”, escreveu Miguel Torga, a lembrar o lado “belo e primaveril” da região, num dos seus poemas.
Manuel da Fonseca, nos finais da década de 60, vindo de camioneta, chega à vila piscatória. O que encontra, descreve, são “pessoas risonhas, que se agrupam, dispersam, cruzam, e se explicam nas mais desvairadas línguas”. Na praia, vislumbra já um ambiente multicultural. “Temos a suspeita de assistir numa terra levantina ao encontro de várias raças, prestes a partirem alegremente para uma bela aventura”.
Segundo os relatos, recolhido pelo município, Cliff Richard aparece pela primeira vez, em 1961, e provoca burburinho entre a população. A propaganda da época descreve o sítio como sendo a “Saint-Tropez portuguesa”. A revolução hippy da flor no cabelo germinou no contacto directo com a natureza, e o slogan “peace and love” entrou na história. O café Bailote torna-se o centro de cruzamento de culturas. “Foi o pintor Bailote que impulsionou nesta vila o primeiro grande surto turístico”, escrevem Idalina Nobre, Luísa Monteiro, Manuela Santos e Rui Gregório (fotografia) em Albufeira Revisitada, destacando também o papel do cientista sueco Bertil Gullander (1915-1999), especialista em borboletas, que fez ilustrações científicas com novas espécies descobertas na região. O café converte-se numa galeria de arte, e os nórdicos rapidamente vêem as suas peles brancas ficarem cor de salmão, depois dos banhos de Sol.
Os britânicos chegam em força, após a abertura do aeroporto de Faro, em 1965. Além de Cliff Richard, Tom Jones e muitas outras figuras do mundo artístico e cultural descobrem a praia dos pescadores. Bonnie Tyler, por exemplo, comprou casa nos Olhos d’Água, no início dos anos 70, e continua a passar férias na praia Maria Luísa. No próximo dia 20, cabe à cantora britânica encerrar as comemorações do Dia Município, com um concerto na praia dos Pescadores. O início da propaganda turística institucional dá-se em 1941, quando a câmara municipal pede autorização para fazer dez mil postais, divulgando, além das praias, as amendoeiras em flor, chaminés rendilhadas e a indumentária associada ao folclore. No mesmo sentido, o corridinho e o “baile mandado” passam a ser entoados, nos hotéis, como se fossem o “hino” da cultura turística da região
Piratas, “mânfios” e gandulos
Séculos antes de ter surgido a indústria turística, já os mercados do norte da Europa tinham saboreado os figos algarvios, exportados, sobretudo, para a Flandres e Inglaterra. A praia dos Olhos d’ Água é um dos sítios onde a terra entra pelo mar adentro, não apenas no sentido metafórico. Os homens do mar, refere Leonel Santos, são filhos ou netos de pescadores. “As pessoas não faziam férias, vinham a banhos”, recorda o antigo pescador, que se lembra o “convívio” com Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e outros nomes ligados à música de intervenção. Este é um sítio especial. No mar e na praia rebentam mais de centena e meia de olheiros de água-doce, e até se conta uma lenda associada a uma das nascentes. O primeiro morador da aldeia piscatória, José Maria Júnior, quando vinha do campo com as cabras, reparou que os animais iam beber ao mar. Estranhou, e fez o teste: bebeu, e a água era doce. Nasceu assim o “olheiro da cabra”.
As boas condições de atracagem da costa de Albufeira facilitaram, ao longo dos séculos, o comércio marítimo, e ao mesmo tempo as incursões de piratas e corsários, desde a ocupação islâmica. Após a conquista cristã do território, lê-se no livro Albufeira revisitada, as condições de vida dos muçulmanos tornaram-se difíceis, e alguns enveredaram pela luta armada. Apareceu o chamado “bandoleirismo mourisco”, organizado em três grupos distintos: piratas, “mânfios” e gandulos. Mas também havia algarvios e de outras nacionalidades que se dedicavam à pirataria. O corsário Simão Gonçalves, que nasceu em Ceuta e viveu em Lagos até aos 14 anos, adquiriu “astuto de valentia”, mas não teve grande sorte. Acabou por ser preso em Albufeira, em 1554, segundo descreve Fernando Pedrosa, no artigo “Corsários e Naufrágios na Costa do Algarve”.