Casa Cid, taberna centenária do Cais do Sodré, corre o risco de fechar
Taberna aberta em 1913 por um galego que quis aproveitar o movimento do mercado da Ribeira está a lutar contra o seu encerramento. O prédio que hoje ocupa vai ser transformado num hotel e o proprietário diz que “não existem nesta data condições para assegurar a manutenção do restaurante”.
Põem-se as mesas na Casa Cid. Falta pouco para o meio-dia, hora de abertura aos fregueses, mas há muito que começaram os trabalhos de preparação dos comes e bebes do dia. Já chegou o peixe e a carne, ali dos vizinhos peixeiros e talhantes do Mercado da Ribeira. Para o almoço, há carapaus assados, salada de atum, febras grelhadas e novilho à Lafões. É assim todos os dias, quatro pratos à escolha do freguês numa taberna como já poucas se vêem na capital, pelo menos na baixa da cidade. E também esta, depois de 106 anos de portas abertas, já tem fim anunciado.
Borja Cid, 37 anos, senta-se à mesa de avental posto e respira fundo antes de começar a falar na sua mistura de português com galego e castelhano. “Querem correr com a gente”, atira o gerente, abordando o futuro incerto da Casa Cid. O prédio foi comprado há cinco, seis anos pelo Fundo Sete Colinas que tem vários projectos ali para a zona do Cais do Sodré. Em 2015, o contrato de arrendamento transitou para o Novo Regime do Arredamento Urbano e, no ano passado, o proprietário comunicou-lhes que teriam de abandonar o espaço em Maio de 2019. Não saíram e conseguiram ficar mais um ano. Mas Borja duvida que consigam esticar mais o prazo.
É preciso recuar até ao final do século XIX para perceber a visão de um visionário galego de Ourense, Manuel Cid Nuñez. O bisavô de Borja mudara-se para Lisboa e via nascer ao pé do rio um novo mercado. Andou por Angola e Moçambique até que regressou a Lisboa e abriu a Casa Cid em 1913, na rua da Ribeira Nova, nas traseiras do mercado que abrira em 1882. “O meu bisavô pensou assim: ‘o mercado está ali, é muita malta’. A razão de ser da casa é o mercado”, diz.
Manuel Cid Nuñez acabou por nunca trabalhar na taberna, conta o bisneto. Encarregou um galego de ficar à frente do restaurante, até que um dos filhos - e avô de Borja - acabou por tomar conta do negócio da família.
Nos anos 40, 50, o restaurante chegou a estar aberto 24h por dia, quando o “mercado era outro mundo”. Nas décadas mais recentes tornou-se sítio de after hours para matar a fome aos foliões noctívagos, quando tinha licença para estar aberto até às 4h.
Borja entra na história da Casa Cid em 2017, quando a mãe e a tia lhe pediram para ficar à frente do negócio. Madrileno, acabou por trocar as cozinhas de restaurantes conceituados por onde andou pelo mundo, por esta pequena tasca de Lisboa.
Hoje, sente que tem também ali uma missão. A de manter os sabores e pratos tradicionais portugueses acessíveis a quem os quiser experimentar. “Uma pessoa quer um chouriço grelhado não há. Cozido, feijoada, dobrada não há”. Os turistas também chegam à procura disto, diz, garantindo que 80% dos fregueses que lhe enchem a casa no Verão são estrangeiros.
Para tentar segurar a casa, candidataram-se — desde os anos 70 que a Casa Cid tem mais um sócio — ao programa municipal “Lojas com História”, que visa “preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural, mas a atribuição desse estatuto foi rejeitado. Borja diz que já pediu uma reavaliação do processo. “Se isto não é uma loja com história, eu não sei o que é”.
Ao PÚBLICO, a autarquia refere que a apreciação do grupo de trabalho foi desfavorável porque a Casa Cid se encontra “bastante descaracterizada”. Ele contrapõe e diz que foi a ASAE que assim exigiu que se mudassem os balcões de madeira para seguir a “febre do inox”, a bem da higiene e segurança alimentar — obra essa feita ainda em 1989. “O meu avô queria estar na vanguarda”, recorda.
"Mais torresmos e menos aldrabices gourmet"
O “único segredo” da casa, diz Borja Cid, é ir todos os dias à praça como se fazia há cem anos. “Tento comprar só peixe para o dia, ver a carne que está boa. É a vantagem de ter aqui o mercado.” Antes do almoço, lá chegam os vendedores do mercado para tomar a sua bica. “Tira aí um café para a Dona Teresa”, pede.
“Esta senhora é de um talho daí. A senhora que passou aqui fornece as douradas. Daqui pouco o senhor que fornece o peixe vem aqui almoçar. É isso que eu considero a história da loja. Não as coisas materiais, é mais uma história imaterial”, diz.
Para já, está a correr um processo em tribunal para tentarem adiar o fecho da casa já anunciado para Maio de 2020. “A única hipótese seria a câmara de Lisboa dar algum tipo de protecção ou haver alguma negociação com o senhorio”.
Em resposta ao PÚBLICO, o Fundo Sete Colinas, gerido pela Silvip, confirma a existência de um “processo judicial” em que “a arrendatária Cid & Gonzalez, Lda. pede uma indemnização pelo fim do contrato e senhorio solicita a entrega do espaço ocupado pelo restaurante uma vez que o prazo do contrato de arrendamento em causa terminou em 31 de Maio de 2019, sem que a sociedade arrendatária o tivesse restituído voluntariamente”.
E confirma que existe já um projecto para transformar o prédio num hotel, estando “pendente um processo de licenciamento nos serviços municipais”. A Silvip nota ainda que “não existem nesta data condições para assegurar a manutenção do restaurante”, apoiando-se no parecer desfavorável de integração do restaurante no programa “Lojas com História”.
“Eu não quero sair. É a história da minha família. Se eu conseguir ficar aqui é o sonho. Precisava de ter segurança para investir na casa, porque a casa está a cair”, diz. Abrir um restaurante novo é “impensável”. Por agora, conseguem manter-se ali até Maio de 2020. Depois, o futuro é incerto. “Tento não pensar muito nisso e pensar mais no carapau”. Ainda assim lançou um apelo, dirigido à câmara de Lisboa. No final desta quarta-feira, 433 pessoas tinham subscrito que Lisboa “precisa de mais torresmos e menos aldrabices gourmet. Porque Lisboa quer carapauzinhos fritos, feijoada, postas de bacalhau à maneira, dobrada, pescada cozida, cozidos valentes, caldeiradas e pataniscas...”