A nova América assombrada
Requiem por uma cidade, The Last Black Man in San Francisco é um grandíssimo filme, talvez o melhor de Locarno até agora, num concurso que mostrou também o fetichismo do passado de Tarantino e Tyler Taormina.
“Vocês não podem ver no Google o que se está a passar à vossa frente,” grita um pregador de pé numa caixa de madeira enquanto Jimmie e Mont esperam pelo autocarro que parece nunca chegar. Não faz mal, vai-se de skate, chegando do quase-gueto negro de Bayview Hunters Point ao bairro financeiro onde todos olham para Jimmie e Mont como se eles não pertencessem ali. E, num bairro bem branco, Jimmie visita diariamente a casa que a família perdeu por conta das dívidas do pai, construída, segundo reza a lenda, pelo avô após a II Guerra Mundial. O avô foi o primeiro homem negro na São Francisco dos anos 1940. Jimmie, quarto do seu nome, pode bem ser o último.
Bem-vindos a The Last Black Man in San Francisco (Concurso Internacional), que chega a Locarno depois de ter já estreado em salas nos EUA e de ter conquistado a crítica — todos sabemos como muitos destes novos americanos do momento acabam por não passar de fogachos, de cineastas que depois não repetem o gesto da primeira obra (onde andam Lance Hammer ou Benh Zeitlin, por exemplo?). Mas, apesar de The Last Black Man in San Francisco vir já com patronos fortes (a produção é de Brad Pitt, a distribuidora é a A24, a mesma equipa que tornou Moonlight de Barry Jenkins num fenómeno), há de facto qualquer coisa neste filme terminal, requiem por uma cidade, e por um passado, que se perdeu.
Sim, o filme de Joe Talbot é claramente social — sobre a “gentrificação” de uma cidade que o dinheiro das start-ups e da tecnologia está a esvaziar dos seus habitantes, sobre uma comunidade negra que se atira para um gueto como quem esconde os indesejáveis. Mas é, acima de tudo, um requiem comovente, simbolizado na velha casa de família com aromas e memórias e mobiliário de outros tempos, uma casa verdadeiramente assombrada com os desejos e os remorsos de quem lá viveu, abandonada pelos actuais moradores por questões de heranças e vazia enquanto não se decide a propriedade.
A dada altura, Mont encontra um livro de Proust na biblioteca, e faz sentido: a casa na esquina da Golden Gate com a Fillmore é ela própria uma madalena, um farol, um índice de possibilidades que parecem estar vedadas a Jimmie. Porque não é branco, porque não tem dinheiro, porque é um cidadão de segunda. The Last Black Man in San Francisco é um testemunho para o futuro sobre tudo o que se perdeu e não se encontra no Google. E apostamos que vai estar no palmarés de uma edição de Locarno que, enfim, começa a ganhar tracção.
Estávamos a falar de americanos e Locarno tem sempre tido alguma pontaria nos que vai escolhendo — se The Last Black Man in San Francisco é claramente um filme urgente, a presença na Piazza Grande do épico opus fetishisticum de Quentin Tarantino, Era uma Vez… em Hollywood faz a ponte com a primeira longa de Tyler Taormina, Ham on Rye (Cineastas do Presente). O filme de Tarantino é uma ode fetichista à Hollywood clássica, referenciando com deleite todo um cinema de série B detalhado com precisão maníaca, mas sempre dentro de uma lógica de entertainment. Taormina pega nas prom nights, as festas de fim de liceu, num filme literalmente dividido em duas partes: uma primeira que se abandona com prazer e cuidado à recriação das expectativas e da passagem à idade adulta, e uma segunda que abre para os bastidores dessas expectativas, e para a desilusão que daí resulta, contada num ambiente quase de mitologia pagã.
Digamos, muito sucintamente, que Ham on Rye seria um filme de liceu contado por David Lynch entre a abertura de Veludo Azul e as dimensões alternativas da terceira série de Twin Peaks — mas com uma candura quase ingénua no seu fetichismo assumido dos rituais e algo de história de fantasmas à volta da fogueira. Afinal, é também de fantasmas que se fala aqui.