De quando quatro cirurgiões mandaram um monge de Tibães a banhos à Póvoa de Varzim
No século XVIII, a fama dos efeitos terapêuticos das águas poveiras já chegava longe. O uso da praia mudou, mas a sua atractividade nunca mais parou.
Corria o ano de 1778. Sem barraquinhas de pano listado e pregões a vender guloseimas, os areais portugueses eram pouco mais que lugares inóspitos, frequentados essencialmente por pescadores de “barba rija”, a que se acrescentavam alguns terrenhos em busca de cura para variadas maleitas. Era o caso do padre pregador frei Luís de Santa Teresa, do Mosteiro de Tibães, em Braga, cujo diagnóstico desconhecemos, mas cujo tratamento esse, chegou, pormenorizadamente descrito, até nós: uma temporada de banhos na Póvoa de Varzim.
A história foi contada em 1965 no Boletim Cultural da Póvoa de Varzim, num pequeno mas detalhado artigo de Robert Smith, o historiador de arte norte-americano a quem Portugal deve estudos aprofundados sobre o Barroco. Braga, cidade de “mil igrejas, várias delas pejadas da melhor talha portuguesa, fez obviamente parte do roteiro deste investigador que se apaixonou por Portugal, e, enquanto escarafunchava na documentação do mosteiro, Smith “distraiu-se” com o livro de gastos da enfermaria, referente ao período entre 1725 e 1798, onde encontrou dados sobre maleitas e tratamentos dos frades beneditinos.
As idas à praia, como terapia, são um fenómeno da transição entre os séculos XVIII e XIX. Ao longo de Oitocentos, à necessidade de restaurar o corpo vão-se juntando actividades de lazer e outros serviços que terão um papel crucial na transformação urbana das vilas e cidades que acolhem banhistas, e que Ramalho Ortigão tão bem descreveu no seu guia As Praias de Portugal, em 1876. Quando os monges de Tibães por aqui passaram, um século antes, a praia da Póvoa seria ainda essencialmente, um espaço dos pescadores, ainda longe de poder ser descrita como “o caravansará dos habitantes do Minho em uso do banho ou do ar do mar”, como viria a escrever o autor de As Farpas, mas já se pedia ao rei que mandasse arranjar as estradas de acesso à vila, para benefício dos banhistas.
Ainda antes da estada de frei Luís, outros irmãos da congregação de Tibães tinham já passado pela Póvoa. Em 1778, o corista frei Bernardo, “gastou a modestíssima quantia de 1$580 reais, viajando provavelmente a pé”, revela-nos Robert Smith. Pelos gastos, o monge pouco mais deve ter feito do que uns banhos nas águas frias do Atlântico, ricas, por aqui, em iodo. No ano anterior, 1777, frei Luís de Sales gastara 19$650 reais (quase vinte mil réis), quantia que já incluía 480 réis para “a mulher que conduzia água do mar” para a casa que alugara.
Smith espantou-se com os detalhes das estadias de um outro religioso, o padre pregador frei Luís de Santa Teresa. Em 1784, este monge viajou numa liteira, acompanhado de um moço de Tibães, até ao Mosteiro de S. Bento da Vitória, no Porto, edifício hoje ocupado pelo Arquivo Distrital do Porto e, em parte, pelo Teatro Nacional de S. João. Sabe-se, pelo livro de despesas, que como qualquer bom viajante jantou “na Barca da Trofa”, por 300 réis, antes de chegar ao destino, onde o esperava uma junta de quatro cirurgiões. Desconhecemos o diagnóstico de tão numerosa equipa, mas sabemos que “depois de lhe darem ‘remédios da botica, e vários frangos, e leite’ resolveram mandar frei Luís para a Póvoa de Varzim”, escreve o americano.
Para a actual directora do Museu Municipal de História e Etnografia da Póvoa de Varzim, Deolinda Carneiro, a receita dos quatro cirurgiões atesta a fama curativa que, já naquele tempo, as águas da Póvoa teriam entre a elite do país. Ainda faltavam mais de 120 anos até que o médico poveiro Belarmino da Costa Pereira escrevesse a dissertação A Póvoa de Varzim como Estação Balnear Marítima, na qual recomenda “pelo menos dois meses, e dois períodos de vinte banhos, separados por um intervalo de oito dias” para a convalescença de uma doença grave como “a febre tifóide, a angina flegmonosa, feridas, fracturas de membros, etc.”. Seria alguma destas a maleita que afectava frei Luís?
Bom, o certo é que o beneditino teve de viajar de novo, desta vez do Porto para a Póvoa (de novo em liteira, que o comboio a vapor ainda não tinha sido inventado e só viria a fazer esta ligação, tão importante para o desenvolvimento da Póvoa balnear, um século mais tarde, em 1875). Levou um irmão da congregação, um carro para transportar os seus fatos, e um moço, que o ajudaria na ida aos banhos. Alugaram uma casa, muito provavelmente a pescadores locais, pagaram a uma mulher que lhes fez “o comer” e, sendo necessário, às vezes, tomar os banhos em casa, gastaram 640 reais em dois carros de lenha, para aquecer a água. O livro de despesas inclui outros detalhes, como compras de alimentos, entre os quais não existe referência a peixe – que, por certo, lhes seria oferecido.
O conflito com os pescadores
Peixe era coisa que não faltava na Póvoa – que tinha, então, uma das mais importantes comunidades piscatórias do reino (conhecida desde as Inquirições de 1220), navegando, em lanchas e catraias, por largas extensões da costa, desde a Galiza ao sul de Aveiro. Mas o século XIX ficará marcado por uma disputa de território entre pescadores, necessitados de áreas para varar barcos, secar e guardar as suas redes e outros aparelhos, e o município, interessado em melhorar as infra-estruturas para os banhistas e em segregar os usos do espaço urbano em franco desenvolvimento.
A Avenida dos Banhos, que implicou uma permuta de terrenos com a irmandade que representava os pescadores, foi construída onde antes havia varais. As actividades ligadas à pesca foram sendo empurradas para sul desta área enobrecida com os seus novos frequentadores, e ao longo de Oitocentos e Novecentos, a Póvoa conhece um processo de substituição para o qual adaptamos um estrangeirismo: gentrificação. Empurradas pela especulação imobiliária, centenas de famílias vão ocupando as dunas para lá do limite sul do concelho, já no município de Vila do Conde, dando origem aos lugares de Poça da Barca e de Caxinas, onde os descendentes dessa gente mantêm uma forte ligação ao mar.
Quando Ramalho Ortigão por aqui passou, a cidade era já um espelho dessa mudança social e urbana, e o cronista capta, no texto que dedica a esta estância balnear, a diversidade de gente que, no Verão, lhe multiplicava, como ainda multiplica, a população. Mas a Póvoa, foz de uma enxurrada de minhotos, prevalecia como lugar de descanso para lá do Verão. Os lavradores dos concelhos em volta esperavam pelo dia de S. Miguel (29 de Setembro), para, terminadas as colheitas e feitos os pagamentos, se atirarem a uns dias de descanso à beira-mar. Foi o que fizeram, em 1940, um bracarense abastado, José Vieira de Carvalho, e a mulher, Dona Antónia Rosa da Conceição, que mandaram pintar um ex-voto, no qual surgem representados, de vestes garbosas, com a criada e um bebé de berço, filho de ambos, que adoecera a 27 de Outubro, estando a família a banhos na cidade. Surgem diante de um altar do Bom Jesus da Prisão (na Igreja da Misericórdia da cidade), cuja invocação salvou a vida do menino, a 1 de Novembro, mandaram escrever na tela votiva.
Não sabemos se, refeitos do susto, continuaram as férias, Novembro dentro, ou se regressaram a casa. Mas a sua história, como outras que marcaram a Póvoa balnear, perdura nas paredes do museu local: um bom refúgio, nestes dias de Agosto de 2019 em que o Inverno parece quer experimentar – e estragar – a fama das Praias de Portugal, para quem arriscou passar uns dias entre os poveiros. Até que o sol reapareça.