Modi arrisca conflito regional ao amarrar Caxemira à Índia

O primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, já alertou que as decisões de revogar o estatuto especial de Jammu e Caxemira e a sua divisão em dois territórios indianos podem criar conflito entre os dois Estados com armas nucleares. Pediu ajuda a Donald Trump.

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No domingo, o Governo indiano cortou as comunicações, impôs o recolher e ordenou a detenção dos líderes de Caxemira FAROOQ KHAN/LUSA

O Governo nacionalista hindu da Índia aprovou esta segunda-feira um decreto a revogar o estatuto especial do estado de Jammu e Caxemira e anunciou a sua divisão em dois “territórios” indianos. É a maior mudança neste estado desde 1950 e o mais recente passo no sonho do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, de unificar o subcontinente indiano sob hegemonia hindu, o “Akhand Hindustão”. E a tensão com o Paquistão pode aumentar significativamente, enquanto a oposição interna o denuncia como inconstitucional.

O ministro do Interior indiano, Amit Shah, anunciou no Parlamento que o Governo ia abolir o artigo 370 da Constituição, que garante a autonomia de Jammu e Caxemira, e submeter a votação uma lei a propor a divisão do estado em dois “territórios da união”, Jammu e Caxemira e Ladakh, por razões de segurança e desenvolvimento. Serão a partir de agora directamente governados por Nova Deli. “Toda a Constituição passará a ser aplicável no estado de Jammu e Caxemira”, afirmou Shah, revelando que o seria de “imediato”.

As características demográficas da região também devem sofrer grandes alterações. Com a revogação do artigo 370, o artigo 35A, que distingue os residentes permanentes dos estrangeiros, também foi anulado. O artigo, de 1954, salvaguardava que a população muçulmana era a maioria e proibia os estrangeiros de residir permanentemente, impedindo-os de comprar terras, possuir negócios, receber bolsas escolares e ocupar cargos governativos. Teme-se que milhares de hindus se instalem na região e tensões étnico-religiosas irrompam.

“A intenção do Governo indiano é clara e sinistra. Quer mudar a demografia do único estado muçulmano da Índia, retirar poder aos muçulmanos ao ponto de se tornarem cidadãos de segunda classe”, disse no Twitter Mehbooba Mufti, ex-ministra chefe de Jammu e Caxemira, sublinhando que haverá consequências catastróficas no subcontinente indiano”. “O dia de hoje é o mais negro da democracia indiana”.

O anúncio foi louvado pelos deputados nacionalistas hindus e principais aliados do Governo de Modi e contestado pelos da oposição. “Hoje, tomámos Jammu e Caxemira. Amanhã, será o Baluchistão e a Caxemira ocupada pelo Paquistão. Acredito firmemente no sonho do primeiro-ministro de que o ‘Ahkhand Hindustão' se tornará realidade”, disse o deputado Sanjay Raut, do partido nacionalista hindu Shiv Sena, referindo-se a um projecto de unificação do subcontinente indiano num Estado moderno de hegemonia hindu. “O Governo brincou com os sentimentos do povo de Caxemira. Caxemira não se deve tornar num Kosovo, Timor Leste ou Sudão do Sul. Oponho-me a esta lei”, contrapôs no debate parlamentar o deputado Vaiko, líder do partido MDMK.

É constitucional?

A constitucionalidade da decisão está no cerne da disputa política. A oposição diz que o artigo 370 é parte integrante da Constituição e, portanto, não pode ser revogado sem uma reforma constitucional, enquanto o Governo argumenta que o Presidente tem poderes para, com o consentimento do executivo de Jammu e Caxemira, o revogar. Porém, desde 2018 que a região está a cargo de um governador nomeado por Nova Deli e todos os partidos denunciaram a decisão.

O partido de Modi, o nacionalista hindu Bharatiya Janata Party (BJP), venceu as eleições gerais deste ano ao conquistar 300 dos 543 assentos da câmara baixa, mas a alteração da Constituição requer uma maioria de dois terços (362). Na campanha eleitoral, Modi apostou na demonização dos muçulmanos e prometeu à base hindu a revogação dos artigos 370 e 35A para unificar o país. E cumpriu.

Nos últimos dez dias, o Governo indiano enviou mais de dez mil soldados para a região e, diz a BBC, mais tropas estarão para chegar – fala-se em pelo menos 70 mil, quando 700 mil já estão no terreno. Na noite de domingo para segunda-feira, as autoridades cortaram todas as comunicações, impuseram o recolher obrigatório e detiveram líderes regionais, com milhares de paramilitares a patrulharem as ruas. “As pessoas estão preocupadas. Não sabem o que se está a passar nem o que vai acontecer. É uma atmosfera de medo”, explicou o correspondente da BBC em Caxemira, Aamir Peerzada.

Atmosfera política que não foi bem recebida por Islamabad. “O Paquistão condena veementemente e rejeita os anúncios hoje feitos pelo Governo indiano sobre a ocupação de Jammu e Caxemira”, disse em comunicado o Ministério dos Negócios Estrangeiros paquistanês, garantindo que “o Paquistão vai exercer todas as opções disponíveis para contrariar esta acção ilegal”.

E o primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, usou o Twitter para pedir ao Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que medeie a crise “para que a situação não se deteriore ao longo da linha de demarcação com novas acções agressivas das forças de ocupação indianas”. “Isto tem o potencial para escalar para uma crise regional”, alertou.

Há trinta anos que grupos armados apoiados pelo Paquistão combatem as forças indianas em Caxemira e, agora, poderão ganhar um novo fôlego, recrutando e conquistando apoiantes entre a população. Um destes grupos, o Jaish-e-Mohammed, esteve no centro da mais recente escalada de tensão entre as duas potências nucleares quando um atentado causou a morte a 44 soldados indianos – o mais mortífero das últimas três décadas. Nova Deli respondeu com bombardeamentos e o Paquistão ripostou, acabando por abater dois caças indianos – a Índia só confirmou o abate de um ­– e a capturar um piloto, entretanto libertado.

A disputa de Caxemira já levou a duas guerras entre Nova Deli e Islamabad, em 1947 e 1965, e a um curto conflito, em 1999. E as escaramuças na fronteira são constantes.

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