Um trio de um só músico, cabras e polícia: no No Noise tudo é possível

Uma dezena de bandas dentro do espectro da música experimental tocaram em cinco palcos do semi-abandonado Convento de Francos, no Porto, por onde passaram também nomes como Putan Club, Trigger, Sereias ou Dr Truna, a tocarem no “menor festival de Verão”.

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Pelo segundo ano, o No Noise teve como palco o velho Convento de Francos, no Porto Gonçalo Dias
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Os Trigger tocaram um free jazz arrebatador Gonçalo Dias
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Os Trigger tocaram um free jazz arrebatador Gonçalo Dias
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Os Putan Club regressaram ao Porto Gonçalo Dias
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Pelo segundo ano, o No Noise teve como palco o velho Convento de Francos, no Porto Gonçalo Dias
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Pelo segundo ano, o No Noise teve como palco o velho Convento de Francos, no Porto Gonçalo Dias

No terreno de um convento semi-abandonado do Porto está uma bateria montada pronta a ser usada por alguns músicos do cenário experimental nacional e internacional. Ao início da tarde deste sábado, ainda nenhum deles tinha subido ao palco que ali tinha sido montado, e já estava a ser testada por uma criança que se deixou levar pela vontade de experimentar o instrumento. Com dois galhos a substituírem as baquetas, avança para um ritmo improvisado para com isso arrancar alguns sorrisos e palmas de algumas das dezenas de pessoas sentadas em torno desta artista em potência.

Este gesto representa na perfeição o espírito livre e informal que se vive num evento organizado pela Sonoscopia, pela segunda vez a ocupar o Convento de Francos para a 5.ª edição do No Noise, o “não-festival” ou o “menor festival de Verão”, empreendido pela associação dedicada à música experimental, que em cinco palcos mostrou uma dezena de propostas nacionais e internacionais dentro do espectro musical em que se move.

Entre outros, dentro e fora do convento, passaram por lá os destemidos Putan Club, os inventivos Trigger, os descendentes do kraut Sereias ou Dr Truna, “trio” formado, surpreendentemente, apenas por uma pessoa.

É em ambiente caseiro que se é recebido neste convento a precisar urgentemente de obras, por força do estado deteriorado em que se encontra desde que as freiras deste Carmelo inaugurado em 1951 deixaram o edifício em 2001. Esta empreitada levada a cabo pela Sonoscopia, que no ano passado levou para ali o festival, serve também para abrir uma janela para que se possa testemunhar o estado de abandono de um complexo pensado pela Associação de Fiéis do Coração Imaculado de Maria, que de alguma forma gere o espaço, para ser um centro de acolhimento espiritual e cultural.

Ao início da tarde deste sábado, após uma manhã pensada para as famílias com alguns espectáculos para crianças, passeiam-se pelo jardim algumas dezenas de pessoas, enquanto uma mão cheia de cabras e um bode pastam no relvado de uma das áreas do terreno e dois cães vão circulando dentro e fora do convento. Ao mesmo tempo, há crianças que brincam, sem tablets, smartphones ou outro dispositivo electrónico que não as deixe sujar na terra. Sem marcas ou patrocínios, com cerveja artesanal de uma marca conhecida a ser vendida a um preço abaixo do supermercado, 1 euro, e com jantar incluído num bilhete que custa 12 euros, todo ele a reverter para os artistas –​ à excepção de 1 euro que fica guardado para a associação que cedeu o espaço para ajudar nas obras do telhado –, há neste evento algo que deve ser aproveitado como exemplo na forma como concebe uma proposta cultural feita a pensar não no lucro, mas sim no público e nos artistas.

O No Noise privilegia a música, que ali é feita sem amarras, sem estar sujeita à crítica presa ao formato ditado pela pop com verso, ponte e refrão orelhudo. Ali vale tudo o que o processo da experimentação pedir, desde que quem compõe tenha encontrado um caminho que, em primeira análise, cumpra o que procurava encontrar, mesmo que para quem assiste, nalguns casos, não seja de fácil assimilação ou até mesmo incompreensível. A alguém servirá. No experimental, não há verdades absolutas nem caminhos estanques.

No primeiro concerto ao ar livre, depois do peruano Chrs Galarreta ter levado uma das colunas ao limite, ao ponto de a rebentar com o seu noise feito com recurso a pedais e outra maquinaria, o português Vasco Alves, que optou por usar como palco a área do recinto que o circundava e onde estava sentado parte do público, passeava a sua gaita-de-foles, muitas vezes presa a uma nota. Num diálogo entre o instrumento e o software de um computador, levou quem ali estava para um cenário contemplativo, alinhado com o ambiente que se vivia ao início da tarde no jardim do convento.

O caos magnético dos Sereias

Coube aos portuenses Sereias acabar com paisagens idílicas para partirem numa viagem psicadélica feita de algum caos magnético. No local ideal para o fazerem, um vocalista furioso, que não canta mas discursa, qual missa em alucinogénios, a dividir as linhas de voz com uma intérprete que usa sons e deixa as palavras para o colega de banda, serve de guia para um colectivo de músicos apostados em partirem cada um para seu lado. Haverão de encontrar-se em momentos de coesão sustentados por uma bateria que aguenta quase sempre num ritmo constante a dispersão sónica de um baixo redondo, uma guitarra nervosa, maquinaria periclitante e um saxofone desenfreado tocado pelo berlinense com base no Porto Julius Gabriel. Para se perceber o que fazem os Sereias, imagine-se um encontro entre os Neu! e os Mler ife Dada numa estação de comboios com máquinas em constante movimento.

Ainda o público não tinha recuperado desta viagem e os norte-americanos Trigger preparavam-se para levar a cabo a missão de pôr em prática o seu free jazz arrebatador para uma plateia que os aguardava no palco exterior. Ao vivo, apresentam-se com um baterista que conta o tempo como um relógio que apoia uma guitarra insubordinada e um baixo que se perde em linhas que se soltam da secção rítmica para dar espaço à experimentação. Apesar da base das composições nos levar para o jazz, são um trio com atitude rock, nada tímidos quando o caminho que está ao seu alcance trilha os passos do noise.

Putan Club sem barreiras

Ainda antes da hora do jantar, a dupla franco-italiana Putan Club, de regresso ao Porto, transformava o palco do claustro numa arena sem barreiras entre banda e público. Com recurso a bateria programada, atiram-se a um rock sujo quanto baste para encher um palco, por vezes criando a ilusão de que há mais músicos além da dupla. Não há. Cada um a usar uma das extremidades do recinto, tocam frente a frente com o público a tapar-lhes o campo de visão entre os dois. Não há separação entre plateia e banda. Mesmo que houvesse, uma baixista que se passeia constantemente por toda a área do claustro, a desafiar constantemente quem ali está, trataria de quebrar essa barreira.

Antes de terminarem, despediram-se com uma espécie de tributo ao espírito “Do it yourself" (DIY), num discurso que enalteceu esta forma de apresentar bandas para um público, também com mensagem endereçada aos media, de quem dizem não precisar para continuarem a fazer o que fazem. A dupla diz que não precisa de jornais para aparecer – q​uis o destino ser irónico, e aparecem agora num.

Trio de um só músico

A desafiar toda a lógica, o espanhol Dr Trio surgia a triplicar no palco do refeitório. São três versões dele mesmo, uma ao vivo e duas pré-gravadas em vídeo, numa espécie de tríptico formado pelo músico e por duas imagens com som e movimento projectadas na parte de trás. Ao vivo, toca um violoncelo apoiado por maquinaria pré-gravada nos dois vídeos que interagem com a sua performance.

Pouco depois das 23h, Knoles & Costa & Fricová actuavam na capela, cheia, numa das poucas oportunidades de a ver aberta ao público. Entendeu a polícia que o evento devia ficar por ali. Numa zona da cidade associada ao tráfico de droga, foi a música que chamou para ali as autoridades. Aparentemente, não era hora para se experimentar cultura. Alguém que saía do recinto comentava: “Nunca a polícia chegou aqui tão rapidamente”.

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