Uma “caixinha de jóias” modernistas num museu de arte sacra
O Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, recebeu, como “prenda” da seguradora Cosec, o depósito temporário de dezena e meia de pinturas e tapeçarias de autores de referência da arte portuguesa da época moderna e contemporânea.
“Já sei, querem que trate da iluminação desta ‘caixinha de jóias’”! Isabel Fernandes, directora dos museus nacionais de Guimarães (Alberto Sampaio, Castelo e Paço dos Duques), retoma esta expressão do Sr. Torcato Ribeiro, um electricista com especial sensibilidade para as artes, para caracterizar o acervo que inesperadamente calhou em sorte à cidade, cortesia da seguradora Cosec intermediada pela ministra da Cultura, Graça Fonseca. Desde o passado dia 28 de Junho, o Museu Alberto Sampaio acolhe em duas das suas salas um conjunto de nove obras de pintura e seis tapeçarias de autores de referência da arte portuguesa do final do século XIX e do século XX: Carlos Botelho, Maria Helena Vieira da Silva, Cruzeiro Seixas, Menez, Rogério Ribeiro e Júlio Pomar são os autores das tapeçarias; já Vieira da Silva está também representada na pintura, ao lado de Silva Porto, Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa, Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso, Abel Manta, Manuel d’Assunção e Ricardo da Cruz Filipe.
Estas obras constituem a colecção de arte da Cosec, a maior seguradora portuguesa nos ramos do seguro de créditos e caução. A comemorar o seu 50.º aniversário, a companhia decidiu lançar “uma iniciativa de responsabilidade social corporativa que fosse marcante”, explicou ao PÚBLICO, por email, Maria Celeste Hagatong, presidente do conselho de administração. Respondendo ao repto do Ministério da Cultura (MC) para que as empresas disponibilizassem as suas colecções de arte à fruição do público, a seguradora cedeu a sua colecção, cuja constituição remonta à década de 1980.
“A escolha do Museu Alberto Sampaio resultou de uma sugestão do Ministério da Cultura, com a qual, de imediato, concordámos, pela localização em Guimarães e pela qualidade deste museu”, acrescenta a administradora, especificando que o protocolo assinado com o ministério tem um prazo de cinco anos, “extensível”, e que a companhia o vê como “uma iniciativa de longo prazo”.
Este protocolo com a Cosec surge na sequência de outros que o MC vem celebrando relativos a outras colecções de arte, nomeadamente o que foi firmado, no início de 2018, com o Novo Banco, e que tem permitido a distribuição de obras desses acervos por vários museus do país – recentemente, outro protocolo com idêntico objectivo foi assinado entre o Museu do Chiado e o Museu Nadir Afonso, em Chaves.
Dez séculos de história de arte
O Museu Alberto Sampaio, localizado em pleno centro histórico de Guimarães, detentor de 12 tesouros nacionais entre um espólio especialmente centrado na arte sacra, com peças que vêm do século X ao século XVIII, vê-se assim enriquecido e actualizado com uma nova colecção de arte dos últimos dois séculos.
“É muito interessante as pessoas virem aqui para ver um museu de arte sacra – que José Saramago, na sua Viagem a Portugal, disse ser dos mais belos do país – e depois apanharem com a arte moderna e contemporânea desta excelente colecção”, diz Isabel Fernandes numa visita guiada pelas duas novas salas, que tiveram de ser expressamente adaptadas para acolher o naturalismo de Silva Porto e Columbano ou o modernismo de Amadeo e Vieira da Silva.
Os dois espaços em causa, a Sala dos Penselos (nome que advém de uma freguesia do concelho de onde provêm algumas esculturas do século XVI ali expostas) e a Sala do Capítulo (do tempo da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira), estão localizados na ala até agora utilizada para as exposições temporárias. Além de um novo sistema de iluminação montado por Torcato Ribeiro, coube aos arquitectos vimaranenses Sónia Moura e Carlos Fonseca comissariarem a instalação das obras, o que fizeram, nomeadamente na Sala dos Penselos, através de uma solução inovadora no revestimento das paredes. A substituir a pintura com esmalte branco, aplicaram uma argamassa natural à base de argila, de cor castanho-ocre, que “se adequa muito bem a espaços museológicos, uma vez que absorve o vapor de água libertado pelas pessoas”, explica Sónia Moura.
Associada à diminuição da luz das janelas, a atmosfera intimista assim criada “liga perfeitamente com as obras antigas e a cor dourada do museu” – os retábulos de madeira dos séculos XVII e XVIII, por exemplo, que o visitante encontra na sala imediatamente anterior. “As obras contemporâneas também têm dourados, e isso permite uma transição equilibrada de um espaço para o outro”, acrescenta Carlos Fonseca, realçando a preocupação de evitar “um choque excessivo” neste contacto entre dois mundos estéticos diversos.
Os dois “bio-arquitectos”, como ambos se intitulam, salientam ainda que a argamassa que, depois de vários estudos e ensaios, criaram especificamente para acolher a colecção da Cosec tem ainda a vantagem de resolver o problema da humidade. “Nos museus, é muito importante usar os materiais naturais, à base de cal aérea ou argila, porque absorvem a humidade e evitam o uso dos desumidificadores”, reforça Carlos Fonseca, adiantando que esta solução foi utilizada, por exemplo, pelo arquitecto suíço Peter Zumthor no Museu de Colónia, na Alemanha.
Esta solução não foi ainda usada na Sala do Capítulo, que, por agora, acolhe apenas cinco das seis tapeçarias – a de Júlio Pomar, intitulada Pega de Touros, “há-de vir mais tarde”, diz Isabel Fernandes –, e cujo tratamento incidiu principalmente na limpeza das paredes, que recuperaram a pedra viva, e também na filtragem da luz. A directora diz que o ideal seria o museu poder substituir a pintura de todas as suas paredes com o novo revestimento, algo que as restrições orçamentais não permitem, por enquanto.
Dois cenários
O visitante depara-se, assim, com dois cenários diferentes para os núcleos da pintura e da tapeçaria, qualquer deles suficientemente acolhedor para essa nova experiência de contemporaneidade num museu especialmente conhecido pela sua colecção de escultura e de arte sacra.
Na Sala dos Penselos, a obra que primeiro chama a atenção, até pela sua localização estratégica no espaço, é o óleo sobre tela de José Malhoa, Os Oleiros (1896). “É a minha obra preferida”, diz Isabel Fernandes, justificando a predilecção com o seu interesse particular e a sua especialização nas áreas da olaria e da cerâmica. Mas acrescenta também gostar muito da tapeçaria de Menez, uma Paisagem igualmente colocada em lugar de destaque na Sala do Capítulo.
Sónia Moura e Carlos Fonseca decidiram a disposição das peças por um critério temático e tipológico. Daí que, seguindo pela direita, o visitante possa admirar uma sucessão de retratos, a começar pelo de Columbano, que se acredita poder representar a sua mulher, e seguindo-se aquele em que Eduardo Viana visita o S. João no Porto na figura de uma mulher com um cravo e um manjerico nas mãos.
“Era complicado criar uma unidade a partir de uma colecção assim tão díspar, que tem naturalistas, modernistas e surrealistas”, diz a arquitecta, não escondendo também a sua predilecção pelas obras dos modernistas e de Vieira da Silva em particular.
Quando chegar a Pega de Touros, de Pomar, que lugar lhe será destinado entre as paisagens espaciais e surrealizantes de Rogério Ribeiro (Encontro de Astros, 1964) e de Cruzeiro Seixas (Este Astro, n/d)?