Uma residência artística no Porto oferece um leque muito alargado de escolhas a um fotógrafo. Para Pauliana Valente Pimentel, o caminho era obrigatório: retratar a juventude da cidade. Instalada no Maus Hábitos durante dois meses, decidiu que seria esse o ponto de partida: “jovens que marcam, hoje, a vida cultural e criativa do Porto” a partir de um “espaço tão curioso onde se passa tudo”. O resultado está à mostra na exposição Ask The Kids, que é inaugurada esta quinta-feira, 1 de Agosto, no Maus Hábitos, às 21h30, e por lá fica até 15 de Setembro.
Pauliana tem no portfólio vários trabalhos desenvolvidos com jovens, como O Narcisismo das Pequenas Diferenças (2018), The Passenger (2012) e Quel Pedra (2016), que lhe valeu a nomeação para o Prémio Novo Banco. Em Ask The Kids, contou com a ajuda de Pedro Mkk, fotógrafo que documenta as noites no Maus Hábitos e que a apresentou aos retratados. Procurava “jovens que tivessem alguma cabeça, futuro e uma dinâmica fora do comum”, para além de um visual distintivo, conta a fotógrafa lisboeta à conversa com o P3 nas vésperas da inauguração. Retratou dez, todos com menos de 26 anos, que vivem sobretudo da arte e para a arte que “praticam e incorporam”. Escolheu-os através de um “casting por telemóvel”, através do Instagram, a rede social onde se mostram e comunicam entre si.
Os retratos foram feitos “na intimidade” de cada um, procurando mostrar o lado vulnerável e oculto que a artista visual entende ser mais “interessante”, sobretudo numa geração que se apresenta com tanta “ficção” nas redes sociais — principalmente no Instagram. Os dez jovens atraíram-lhe a atenção por serem “únicos”, por representarem uma nova geração “segura de si”: “São diferentes de quando eu era jovem. Há um lado de transgressão, abertura e questionamento que me atrai e também os escolhi em função disso.”
Para a fotógrafa, o seu trabalho “só faz sentido se for com intervenção social e política”. Em Ask The Kids, as imagens “per si” permitem que as pessoas se questionem sobre vários assuntos fundamentais. Questões de género, raça ou problemas ambientais, “tudo sem legendas”, são alguns dos temas presentes. “[Eles] Recusam os estereótipos que a sociedade lhes quer impor”, explica Pauliana, que, por exemplo, entrou no quarto “nunca visitado” de João, apanhou Catarina a sujar-se (e a fazer arte) com terra molhada, vislumbrou a intimidade para lá do show business de Peter e sentou, na barbearia abandonada da Garagem Passos Manuel, Morgana, a drag queen mais nova do Porto.
O que não se vê no Instagram
Sentado numa das mesas do Maus Hábitos, João Viana conta ao P3 que a fotógrafa foi a primeira pessoa a visitar a sua casa, um espaço onde “nem amigos tinham entrado”. A timidez do jovem de 24 anos, que estuda Design de Moda, só desaparece quando chega às festas que anima. Não é uma drag queen, “como muita gente pensa”, nem quer ser mulher: é apenas um club kid a expressar um lado que antes estava confinado à casa de banho e ao quarto, onde Pauliana o fotografou.
Da família herdou dois mundos quase opostos: “a parte mais louca” veio da mãe, com quem viveu até meio da infância, e que expressa durante a noite; ao pai, com quem ainda vive, juntamente com o irmão, a avó e o tio, foi buscar a faceta “mais tímida” e rigorosa, notória durante o dia.
Apesar das diferenças, João tem “muito apoio dos dois lados da família” para ser quem é. Natural de Valongo, foi no Porto, na Escola Artística Soares dos Reis, que pela primeira vez encontrou “outras mentalidades” e percebeu o que era a diversidade e a liberdade individual. Começou a sair à noite, a fazer amigos fora da terra natal. Com eles, “há cinco ou seis anos”, foi parar por acaso a uma festa no Maus Hábitos, a Shuggah Lickurs. Nunca mais deixou de dançar no espaço desde então.
O produtor Peter Castro já era DJ nessa altura. Organiza festas no Porto através da Pyrats Production, que fundou. A mais famosa é a Beyoncé Fest, em que a música é toda da artista. Um conceito que criou “em jeito de brincadeira” por precisar de dinheiro para ir a um festival.
É uma personagem conhecida na noite da cidade e, por isso, não é tão reservado quanto ao conteúdo que coloca no Instagram, “a nova televisão”. Ainda assim, considera que quem vê o seu perfil constrói uma imagem errada. “Muitas vezes as pessoas acham que passo o dia a beber champanhe na piscina. É mentira, estou a dobrar meias no sofá a ver um programa qualquer”, exemplifica. Durante o tempo que estiveram juntos, Pauliana surpreendeu Peter ao mostrar interesse “num lado mais criativo” do DJ, uma das poucas áreas em que não se expõe tanto: “Eu pinto imenso, tenho um atelier em minha casa, mas não é uma coisa que as pessoas saibam muito que faço.”
Foi Peter quem levou Andreia Ucha Gama para a Pyrats Production. Recém-licenciada em Teatro, entrou há pouco tempo para a equipa da Beyoncé Fest. Utiliza o Instagram sobretudo para debater assuntos “relevantes”, como racismo ou machismo. A rede social, diz, é “uma faca de dois gumes” e não faltam opiniões “disparatadas”, por isso a portuense de 23 anos gosta de criar “tumulto” para abrir mentalidades: “É preciso falar, obrigar as pessoas a questionarem, porque muitas vezes vivemos numa bolha, completamente desligados do que se está a passar à volta.”
Filha de pais guineenses, faz parte do que diz ser uma “dupla minoria”: mulher e negra. Desde muito cedo, Andreia sofreu com abordagens abusivas — quer pela cor de pele, quer pelo género —, de que só se apercebeu quando cresceu e ganhou maturidade. Resultado disso, ao expor as suas vivências tem sempre “várias pessoas” a falarem-lhe das más experiências que também tiveram. “Encorajo-as a também partilharem a sua voz”, acrescenta. Não se sente confortável frente a câmaras, mas já protagonizou alguns trabalhos de fotografia. Ultrapassa assim a timidez para “quebrar barreiras” dentro de si, esperando também fazê-lo nos outros, enquanto mulher e negra. Com Pauliana, deixou-se fotografar em casa, no seu refúgio.
Nem todos vêem o lar como abrigo. João Milhazes terminou há pouco tempo o curso profissional de Design Gráfico. Conheceu Pauliana durante o estágio que fez no Maus Hábitos e levou a fotógrafa até à sua terra “mágica”, Vila do Conde, e ao lugar em que se sente mais à vontade: o mar. “Quem me tira o mar, tira-me tudo”, conta o jovem de 18 anos, o único a aparecer em duas imagens da exposição: numa fotografia com um dos seus animais, “mais uma parte” de si do que a casa em que dorme, e noutra na praia, com o namorado.
Para Pauliana, o retrato de João mostra bem dois objectivos do trabalho: ajudar a acabar com o preconceito e mostrar uma geração do amanhã, cheia de abertura. Em casa da avó de João, em Caxinas, percebeu que o jovem “não se sentia confortável”. Por outro lado, com o namorado na praia, “houve essa liberdade para estarem como gostariam de estar”.
Nesse sentido de libertação e autoconhecimento, a fotógrafa, que às 22h desta quinta-feira faz uma visita guiada pela exposição, vê o Maus Hábitos como “um espaço em que [os jovens] começam por serem quem são”, numa cidade em que, apesar desta nova geração, “ainda há preconceito”. Ainda assim, as experiências de Pauliana indicam que Portugal está “num bom caminho”: “Somos um povo aberto e que aceita as diferenças. Só temos a lucrar com isso.” Texto editado por Amanda Ribeiro