Divulgada conversa em que Reagan chama “macacos” a africanos e Nixon reage com gargalhada

O então governador da Califórnia ficou furioso com a histórica votação da ONU sobre a China, em 1971, e culpou os países africanos. Investigador que revelou a conversa reflecte sobre o racismo na Casa Branca para chegar a 2019: “O espírito é mais ou menos o mesmo, apesar de a imagética de Trump ser menos zoológica.”

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A revelação deixou "chocado" um biógrafo do antigo Presidente norte-americano REUTERS/Mike Blake

Na manhã de 26 de Outubro de 1971, horas depois de as Nações Unidas terem reconhecido o regime comunista de Pequim como única autoridade da China continental, o Presidente dos EUA, Richard Nixon, recebeu o telefonema de um colega de partido que estava indignado com o resultado daquela votação. Do outro lado da linha, o então governador da Califórnia, Ronald Reagan, sugeria a saída dos EUA da organização e queixava-se das manifestações de euforia por parte dos representantes africanos, em particular da delegação da Tanzânia: “Aqueles macacos daqueles países africanos – raios os partam, ainda nem estão confortáveis a calçar sapatos!”

Nixon e Reagan não queriam ver os comunistas de Mao Tsé-Tung a substituírem os nacionalistas de Chiang Kai-shek no Conselho de Segurança da ONU, mas foi isso mesmo que aconteceu na noite de 25 de Outubro de 1971. Ao remeterem os aliados norte-americanos para a ilha de Taiwan com o seu voto, muitos países africanos ficaram na mira de Washington.

Mas a ideia de que a vitória internacional das autoridades de Pequim só aconteceu por causa do apoio dos países africanos era contestada no interior da própria Casa Branca.

Num telegrama enviado pela missão dos EUA nas Nações Unidas ao Departamento de Estado norte-americano, no mesmo dia do telefonema entre Reagan e Nixon, lê-se que a derrota diplomática de Washington resultou “de pressões e lóbi dos árabes radicais, Paquistão, Somália, Jugoslávia, do bloco escandinavo e, apesar de garantias em contrário, de prováveis jogadas de bastidores do Reino Unido e de França”. (E Portugal também votou a favor do reconhecimento da China comunista).

Apesar disso, os políticos mais conservadores e anti-ONU, como era o caso de Ronald Reagan naquela época, tinham outro inimigo em vista: os líderes dos países africanos, que não só tinham votado contra a vontade dos EUA, como festejaram o resultado “de uma forma que só visto”, como disse Reagan a Nixon.

O áudio da conversa entre os dois líderes políticos foi tornado público no ano 2000, mas o comentário racista de Ronald Reagan foi mantido em segredo até agora. O responsável pela divulgação foi Tim Naftali, professor convidado de História na Universidade de Nova Iorque e antigo director da Biblioteca Presidencial de Richard Nixon entre 2007 e 2011 – segundo ele, o comentário racista foi mantido em segredo durante anos para “proteger a privacidade” de Reagan.

Trump e as congressistas do Squad

Num texto publicado no site da revista Atlantic, na terça-feira, Naftali diz que faz sentido falar sobre a troca de palavras entre Reagan e Nixon – entre um Presidente e um futuro Presidente dos EUA – ao fim de quase 50 anos, "na sequência de um mês em que o racismo presidencial voltou a fazer títulos nos jornais”.

O historiador refere-se aos comentários do Presidente Donald Trump, há duas semanas, sobre um grupo de mulheres congressistas da ala progressista do Partido Democrata, a quem acusou de “odiarem” os EUA e aconselhou a “regressarem aos países de onde vieram”. Das quatro congressistas visadas pelo Presidente norte-americano, três nasceram nos EUA e uma chegou ao país com dez anos de idade em fuga da guerra na Somália; e todas elas fazem parte de minorias: uma afro-americana (Ayanna Pressley), uma de ascendência porto-riquenha (Alexandria Ocasio-Cortez) e duas muçulmanas (Ilhan Omar, natural da Somália; e Rashida Tlaib, filha de imigrantes palestinianos).

“A conversa de Outubro de 1971 entre o actual e o futuro Presidente faz-nos lembrar que outros Presidentes subscreveram a crença racista de que os africanos ou afro-americanos são, de alguma forma, inferiores. A novidade dos insultos do Presidente Donald Trump não é que ele os tenha proferido, mas sim que os tenha proferido em público”, diz Tim Naftali.

É a primeira vez que se conhece um comentário tão abertamente racista de Ronald Reagan. Ouvido pelo Washington Post, o biógrafo Bob Spitz, autor do livro Reagan: An American Journey, disse que ficou “chocado” com a revelação. “Ao longo da minha cuidadosa investigação sobre os seus documentos privados, nunca encontrei um indício de que Reagan era racista”, disse o jornalista. “Em regra, quando alguém diz que não tem ‘uma única costela racista’, fico logo céptico, mas neste caso fui acabando por admitir que isso era verdade. Por isso, é chocante.”

"Dinâmica do racismo"

Mas para o historiador Tim Naftali, mais importante do que reflectir sobre o comentário racista de Reagan, é enquadrar esse comentário na reacção de Nixon quando o ouviu: o então Presidente norte-americano soltou uma sonora gargalhada e, num espaço de duas horas, telefonou duas vezes ao seu secretário de Estado, William Rogers, para lhe dar conta do desagrado do governador da Califórnia.

“Como pode imaginar”, disse Nixon a Rogers, “há um forte sentimento de que nós não devíamos ver, tal como disse Reagan, estes canibais na televisão como vimos ontem à noite. Cristo, eles nem sequer estavam calçados, e os Estados Unidos vão submeter o seu destino àquilo.”

Para o investigador que divulgou as conversas gravadas em 1971, a reacção de Nixon “mostra o poder da dinâmica do racismo quando encontra um facilitador”. “Nixon usou o telefonema de Reagan como desculpa para adaptar a linguagem dele e transmitir a mesma conclusão a outras pessoas.”

O comentário racista de Reagan e a crença de Nixon de que “as pessoas deviam ser tratadas de acordo com a sua raça, e que a raça deixa implícitas diferenças fundamentais entre seres humanos”, diz Tim Naftali, levanta outro problema: “Importa falar sobre o racismo de Nixon porque ele deixou que as suas opiniões sobre raça moldassem políticas nos Estados Unidos – tanto no país como no estrangeiro. As decisões políticas dele devem ser vistas através dessa lente.”

“Por estes dias”, conclui o historiador, “o espírito é mais ou menos o mesmo, apesar de a imagética de Trump ser menos zoológica. Ao contrário de Nixon, o actual Presidente não sente a necessidade de se esconder atrás do racismo de outras pessoas.”

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