O Mimo dança e sorri, mas escuta as palavras de desordem

O festival brasileiro voltou a Amarante pela quarta vez e nesta edição a proposta musical de mais de 20 concertos deixou pegadas políticas. O rapper Criolo recordou Marielle Franco e Seun Kuti lembrou: “Em África, temos fake news há centenas de anos”.

Fotogaleria
Concerto de Criolo Gonçalo Dias
Show
Fotogaleria
Concerto de Criolo Gonçalo Dias,Gonçalo Dias
Fotogaleria
Ambiente do Mimo Gonçalo Dias
Saxofone barítono
Fotogaleria
Concerto de Seun Kuti Gonçalo Dias
Show
Fotogaleria
Concerto de Seun Kuti Gonçalo Dias
Fotogaleria
Concerto de Samuel Úria Gonçalo Dias
Concerto de rock
Fotogaleria
Ambiente do Mimo Gonçalo Dias

Eles entram, saem, sobem, descem. E, ainda assim, não há pressa. À quarta edição do festival Mimo, Amarante é um postal animado de gente que lhe conhece os caminhos, onde a cultura desagua. E o Mimo, ouviu-se no sábado, “é para toda a gente”. Para os que circulam ou para os que descansam nas esplanadas do centro, cheias. É para quem quiser ver o Tâmega a brilhar ao pôr-do-sol e deixar que, mais tarde, o corpo se adapte a diferentes compassos, ao mesmo tempo que a mente se envolve nas palavras que são balas de amor.

“Amor” foi a palavra que toldou o concerto de Criolo, rapper de São Paulo com o coração na boca, todo ele de branco, a banda também. Actuou já era domingo, 00h30, apregoou, mas não houve liturgia. Mesmo assim, formou-se ali um culto que lhe respondeu prontamente às propostas de união e amor. Mesmo quando esse amor está ausente, como em Não existe amor em SP, quando surgem algumas mensagens a vermelho e preto nas costas da banda: “Censura/ Não/ Ditatura/ Não/ Amazónia/ Viva.” No mesmo ecrã leu-se o nome “Marielle Franco”, política e activista brasileira assassinada em Março de 2018. À data do concerto, tinham passado 500 dias após a morte de Marielle — Criolo não esqueceu (e em Lisboa haverá uma rua com o seu nome).

A fluidez que Criolo transporta fá-lo artista camaleónico e ninguém estranhou. Assim o é na carinhosa electrónica de Etérea, lançada este ano (“É necessário quebrar os padrões (…) Amores aceitos sem imposições”), ou no old school de Convoque seu buda. E nos apontamentos reggae ou no belo desvio de percurso que foi o samba na sua carreira. Mas é sempre “um tapa na cara”: “Ele não, ele não, ele não”, repetiu exaustivamente. “Abrace seu irmão ou sua irmã que está ao seu lado”, pediu, no final, e o público aceitou.

A certa altura, Criolo aconselhou: “Respeitem as crianças.” Até bem perto das 2h, muitas havia pelo Parque Ribeirinho: umas às cavalitas, outras mais cansadas, de olhos fechados ao colo dos pais. Ora, no Mimo, mesmo madrugada adentro, havia ainda famílias compostas, miúdos e graúdos a passearem cães e carrinhos de bebé todo-o-terreno pelo recinto fora. Ainda assim, é como se fosse regra: quanto mais alta a noite, mais baixa a média de idades — e DJ Ride, que começou às 2h, abordou os muitos que por lá ficaram com remixes de Drake, Billie Eilish ou Kendrick Lamar.

(Des)ordem para dançar

O afrobeat contestatário de Seun Kuti, filho mais novo de Fela Kuti, fez Amarante sonhar um African Dream colorido, suado, feliz, acompanhado pelos Egypt80. Bem antes do espectáculo, às 17h, falou das desigualdades que sempre assombraram a Nigéria e o resto do continente africano, mas também o resto do globo. Essa é, aliás, uma das linhas do álbum Black Times, editado no ano passado: a união, a revolução, a conexão humana contra as elites. No Fórum de Ideias, dentro dos Paços do Concelho, a maior parte do público ficaria até ao final da conversa, ouvindo-o e rindo-se com ele. Até porque, no concerto, fez um reparo que gerou gargalhadas: “Toda a gente está preocupada com as fake news… Nós, em África, temos fake news há centenas de anos!” E para quem não conhecia o seu trabalho, ficou uma antevisão para a festa que aconteceu no Parque Ribeirinho. A certa altura, o orador indagou se a hora destinada ao concerto seria suficiente: “Uma hora para afrobeat são três ou quatro canções…” Seun Kuti, resposta na ponta da língua, “relaxou” os mais preocupados: “Não, na verdade são cinco!”

Poucos foram os que se cansaram. Em Bad man lighter repetiu-se: “Funk up the place!” Nem era preciso pedir: o público abraçou aquele groove mid-tempo que ondula os corpos, um mar de gente que teve em Seun a voz que incita a mudança. Ele deslizava pelo palco, saxofone em riste a estimular a desordem e resistência incutidas nas letras cantadas, foi às teclas, tirou a camisa e girou-a com força: “Now you’re ready to rise/ To be free

Através de Criolo e Seun Kuti, ou de Salif Keita, que actuou no primeiro dia do festival, a aceitação das diferenças e a luta pela igualdade chegou ao Mimo. Propositado? “O nosso trabalho é silencioso. Não somos um festival que trata política, mas a arte reflecte-a”, indicou a criadora do Mimo, Lu Araújo. “O que se passa nesses lugares é a consciencialização das pessoas de forma alegre, através de artistas expressivos”, acrescentou.

Dá-lhe, Chico!

Alegre e expressivo é Chico da Tina. O vencedor do Prémio Mimo de Música 2019 entrou no palco a horas a distribuir socos e uppercuts para o ar, a impor respeito. “Estão preparados, bros?”, questionou. Talvez tenha nascido ali uma estrela, talvez não: já muitos sabiam as suas letras (principalmente de Põe-te Fino e Musa) e outros renderam-se à millennial trapstar minhota. A meio, sem vergonha, lançou: “Quero pedir uma salva de palmas para mim!” Claro que a recebeu. E ouviu-se “dá-lhe!” vezes sem conta.

Com um público (às 20h) maioritariamente jovem, estabeleceu uma relação. Até quando, “para calar essas bocas sujas”, de concertina dourada ao peito, tocou o Vira do Minho, a audiência reagiu sem medos. Eles reconhecem-lhe a piada, o discurso, os neologismos e as meta-ironias faladas e reflectidas no ecrã do palco, onde apareciam páginas da Wikipedia de pintores como Pedro Alexandrino de Carvalho, com uma das obras representadas no colar de Chico da Tina. 

Numa cidade que é cenário e envolve os amarantinos, o Mimo desenrolou-se pelos caminhos de Amarante e da arte. Este domingo, foi a vez de Mayra Andrade, “o nome mais esperado” por muitos, como os jovens Pedro André e Catarina Vilaça, que não falharam uma edição do festival desde a primeira, em 2016. O festival contou ainda com Chuva de Poesia para “homenagear o amor nas suas diversas formas” no domingo e a exposição Abstracção. Arte Partilhada Colecção Millennium BCP, no Museu Amadeo de Souza-Cardoso. As datas para 2019 serão anunciadas “em breve”, refere a organização. 

Sugerir correcção
Comentar