Flexibilidade, autonomia e inclusão
A Escola como instituição social em que os futuros cidadãos possam observar, em primeira mão, a Democracia e a Cidadania em funcionamento está em adiantado estado de decomposição.
Estamos a viver um final de ano lectivo pacífico como poucos na nossa história mais ou menos recente. Depois de todos os alaridos e ameaças de há poucos meses, passou-se para uma calmaria em que quase todos parecem ter ficado cansados ou desiludidos demais para contestarem mais do que epifenómenos. Entretanto, os responsáveis pelas principais medidas em implementação nos últimos anos apresentam, praticamente sem qualquer contraditório, balanços muito simpáticos em causa própria e existem três conceitos que formam, para além do divino “sucesso” que tem um lugar muito próprio acima de tudo o resto, uma trindade sagrada para os defensores do actual mainstream educacional e que são “flexibilidade”, “autonomia” e “inclusão”.
É sobre estes mesmos conceitos e o défice da sua prática no quotidiano da vida das organizações escolares que gostaria de me demorar uns parágrafos, relacionando-os com o modelo de gestão e administração escolar que veio de 2008 para ficar.
Comecemos pela questão da flexibilidade: num tempo em que tanto se criticam os saberes estanques, as crenças únicas, as práticas estagnadas, surpreende-me que ninguém tenha aproveitado, de forma séria e consequente, todo um mandato para sugerir uma revisão do modelo de gestão escolar de modo a não termos uma forma única de gerir os agrupamentos e escolas não agrupadas. Porque a realidade é a de uma teorização geral sobre o mundo em transformação do “século XXI” e a necessidade de organizações e indivíduos se adaptarem a mutações cada vez mais rápidas, flexibilizando as suas práticas e comportamentos, e vivermos há mais de uma década sem qualquer alteração significativa a um modelo único de gestão caracterizado pela rigidez e uniformidade de soluções. Só se pode ter lideranças unipessoais, escolhidas num colégio eleitoral, e as chamadas “lideranças intermédias” ditadas por uma escolha limitada à partida pelos directores escolares, acabando tudo por funcionar num circuito fechado que nega o pluralismo e a liberdade de escolha que deveriam ser típicos de uma instituição basilar das sociedades democráticas como é a Escola.
E é aqui que entronca a questão da autonomia, porque as escolas, numa lógica de participação cívica, deveriam ter a possibilidade de escolher a solução que consideram mais adequada para o seu caso particular. Preferem uma liderança unipessoal ou uma solução colegial? Acham mais adequada uma escolha em colégio eleitoral ou uma eleição directa? Consideram que as chefias intermédias devem ser escolhidas a partir de uma shortlist definida superiormente ou num sistema aberto? Compreende-se que quem tem neste momento o poder concentrado, num sistema entre o joanino (por enquanto) e o pombalino (quando a municipalização se instalar), não sinta vontade de o partilhar ou de discutir sequer questões como uma verdadeira limitação de mandatos (porque as indicações são para deixar andar até muitos dos actuais titulares se reformarem, com este ou aquele truque formal), assim como as cortes instaladas em seu redor receiam mudanças que perturbem os equilíbrios estabelecidos. Só que o sistema tem quase tudo de absolutista e muito pouco de iluminado. As Luzes, em matéria de democracia interna, foram-se apagando na generalidade das “unidades orgânicas”.
E é aqui que desembocamos no falhanço que é o de proclamar as imensas virtudes da inclusão, mas recear aplicá-la de forma coerente à vida das escolas e à participação activa da comunidade escolar nas decisões tomadas. Se há traço que define este modelo único de governança das escolas é o da exclusão da maior parte dos que nelas trabalham e que estão, hora a hora, nas salas de aula a desenvolver uma função que tantos dizem ser a mais nobre, mas quase tantos fazem tudo por desvalorizar. Da tutela às lideranças de proximidade, é cada vez mais notória a falta de vontade em “incluir” o maior número de interessados em processos participativos de decisão. Fala-se muito no direito de participação das famílias e até se encenam orçamentos participativos para os alunos, assim como se repete que a Cidadania deve ser aprendida nas escolas. E eu concordo. Mas não deve ser aprendida na teoria ou em práticas controladas, mas através do exemplo vivo. O problema é que a Escola como instituição social em que os futuros cidadãos possam observar, em primeira mão, a Democracia e a Cidadania em funcionamento está em adiantado estado de decomposição.