Condenação sem corpo. “Foi um caso que não era normal”
Na noite de 11 de Março de 2016, quando ia estacionar o carro na garagem colectiva do prédio em que vivia, João Paulo Fernandes foi agredido e raptado. A filha de oito anos, que estava com ele, assistiu a tudo e deu o primeiro alerta. O corpo nunca foi encontrado, mas seis homens foram condenados por terem orquestrado e perpetrado o assassinato do empresário de Braga.
O corpo de João Paulo de Araújo Fernandes, de 41 anos, nunca foi encontrado, mas isso não impediu que seis homens, acusados de terem orquestrado ou participado nos factos que levaram ao seu assassinato, fossem condenados. O acórdão mais recente, do mês passado, é do Supremo Tribunal de Justiça e reduziu para 19 anos a pena de um dos arguidos, que prestou declarações em fase de inquérito, apontando a autoria da morte. A pena de 25 anos, já decidida em instâncias inferiores para os restantes cinco, foi mantida. O Tribunal Constitucional é o último recurso dos homens que ficaram conhecidos como a “Máfia de Braga”, por terem raptado e assassinado o empresário, dissolvendo o cadáver em ácido. Longe vai o tempo em que a ausência de um corpo impedia uma condenação.
Não foi um daqueles casos em que, à partida, não havia suspeitos definidos. O conflito entre a vítima e os dois homens a quem é atribuída a autoria moral do crime – o advogado Pedro Bourbon e o terapeuta Emanuel Paulino, conhecido como “bruxo da Areosa”, a quem também foi atribuída a co-autoria material – era bem conhecido de quem rodeava o empresário; e assim que este foi raptado, a 11 de Março de 2016, no momento em que entrava na garagem colectiva do prédio, com a filha de oito anos a acompanhá-lo, a família foi rápida a apontar o dedo na direcção de ambos. A menina foi a primeira a dar o alerta, procurando ajuda numa farmácia próxima.
Depois da falência de uma das empresas da família de João Paulo Fernandes, Bourbon e Paulino participaram num esquema de ocultação dos bens, permitindo que esta escapasse aos credores. Foi criada uma empresa fictícia, para onde foi transferido o património dos Fernandes, com a promessa de que estes continuariam a usufruir dos rendimentos relacionados com os imóveis (como rendas) e que ao fim de alguns anos, os bens regressariam à esfera familiar. Só que o combinado não foi cumprido, Bourbon e o “bruxo” começaram a vender apartamentos e deixaram de entregar as rendas. O caso chegou a tribunal e João Paulo Fernandes ameaçava avançar com um novo processo.
O tribunal deu como provado que foi esta a motivação que esteve na origem do crime. Francisco Bourbon e Emanuel Paulino organizaram tudo, consideraram os juízes. Iniciaram uma vigilância às rotina do empresário, que estava a viver em França, mas se deslocava a Braga com regularidade, para passar o fim-de-semana com a filha. Orquestraram o roubo de viaturas para usarem na noite do rapto, servindo-se de um amigo de Paulino, que lhes facultou códigos de acesso para poderem entrar no stand onde este trabalhava. Compraram mil litros de ácido sulfúrico, para fazer desaparecer o corpo. Adquiriram telemóveis e outros aparelhos de comunicação destinados a tratar dos factos relacionados com o crime.
Do depoimento prestado pelo inspector que liderou a investigação da Polícia Judiciária, Henrique Noronha, percebe-se que os dedos apontados tiveram consequências imediatas. Francisco Bourbon, que na noite do rapto se encontrava no Sul do país numa reunião do partido em que tinha funções directivas, o Partido Democrático Republicano, de Marinho e Pinto – facto encarado como perfeito, pelo grupo, porque lhe conferia um álibi inabalável –, foi ouvido pela PJ logo na noite do dia 12. Um vizinho de João Paulo Fernandes, que se apercebera das movimentações das viaturas que vigiavam a casa do empresário, anotara a matrícula de um dos carros, e a polícia determinou que o seguro do automóvel estava no nome de Emanuel Paulino.
Por isso, logo a 14 de Março, o “bruxo da Areosa” já estava sob vigilância da PJ. Informações da Via Verde permitiram detectar a passagem de carros associados ao homem, bem como as viaturas envolvidas no rapto. As escutas aos telefones dos envolvidos, iniciadas a 23 de Março, associadas a várias acções de vigilância, seriam essenciais para desenhar o crime que os tribunais deram como provado.
João Paulo Fernandes foi assassinado num armazém de Valongo, ainda durante a noite do rapto. Na manhã seguinte, o seu corpo despido foi transportado na mala de um carro para o segundo armazém à disposição do grupo, por pertencer a um dos envolvidos, em Baguim do Monte, Gondomar. Era aí que se encontrava o depósito com mil litros de ácido sulfúrico e um outro, vazio, onde o corpo seria dissolvido em metade daquela substância corrosiva. Durante o processo, uma fuga no depósito utilizado para o efeito levou os envolvidos a informarem-se sobre a melhor forma de lidar com a situação, telefonando a um químico conhecido, que os aconselhou a comprar areia e água para conter o derrame e a terem cuidado com os pés.
Poucas semanas depois, o grupo decide livrar-se dos dois Mercedes Classe A roubados, que tinham utilizado para raptar o empresário. O primeiro é levado para a Via Norte e incendiado. A PJ está tão perto que quase é atingida pelos destroços decorrentes da explosão. Dez dias depois, a segunda viatura é também incendiada, exactamente no mesmo local. A polícia ouviu enquanto os suspeitos combinavam colocar sangue animal neste segundo carro, para os confundir, caso detectassem vestígios de sangue na primeira viatura incendiada – aquela em que tinha sido transportada a vítima.
Depois das intercepções telefónicas e das acções de vigilância, determinantes na atribuição da responsabilidade de cada um dos suspeitos no planeamento e execução do crime, bem como na ocultação de provas, a 17 de Maio, a PJ realizou uma série de buscas e deteve os seis suspeitos. Nenhum prestou declarações em tribunal.
Um dos advogados, durante o interrogatório a Henrique Noronha, sintetizou o que aconteceu a João Paulo Fernandes: “Foi um caso que não era normal”. A ausência do corpo – cujos vestígios, bem como o depósito em que foi destruído, foram depositados num aterro – não livrou os acusados da prisão. “Longe vão os tempos em que o aforismo ‘sem cadáver não há crime’ teve validade no mundo judiciário”, lê-se na decisão da 1.ª instância.