Uma Assembleia para o SNS: há mais vida além da lei de bases

Embora a iniciativa de discutir e aprovar uma nova Lei de Bases da Saúde seja positiva, e permita relançar o debate sobre a saúde em Portugal, nem só desta lei depende o SNS. A actual discussão sobre a saúde é uma porta aberta para relançar o debate sobre o funcionamento dos órgãos hospitalares.

A saúde está na ribalta da vida política portuguesa. Primeiro, esteve em discussão a Lei de Bases da Saúde (LBS), que foi agora aprovada. A par disso, ao longo desta legislatura, os problemas na saúde têm sido motivo de protestos, greves e conflitos diversos. Mas há mais vida para além da lei de bases...

Em Portugal, o modelo da doença baseado na lesão tem vindo a prevalecer, com a tónica a ser posta mais no tratamento e menos na prevenção (mais eficaz, mas menos lucrativa). O resultado é uma expansão sem precedentes do sector privado, que nos próximos anos poderá vir a alcançar o mesmo número de camas de internamento que o sector público. Esse será um ponto de viragem! Fará sentido continuar a manter um serviço público, universal e “tendencialmente” gratuito quando a maior parte da população portuguesa “preferir” usar os serviços privados?

Apesar da dimensão e da complexidade dos cuidados de saúde que presta (desde os mais simples aos ultra-complexos), o SNS tem perdido muitos utilizadores nos últimos anos. Houve e há uma estratégia de captação das classes médias (e mesmo da classe média-baixa) para os seguros de saúde. Veja-se o caso de diversas entidades públicas que compraram seguros de saúde para os seus funcionários, o que veio até a ser criticado pelo Tribunal de Contas (ver notícia: “Tribunal de Contas recusou visto a 39 contratos no valor de 118 milhões de euros”, publicada pela agência Lusa a 8 de Junho de 2018), ou o caso da política de taxas ditas “moderadoras”, que não fez mais do que equiparar o custo de utilização dos serviços públicos às taxas de utilização dos seguros de saúde.

A estas alterações, o SNS deu sempre uma resposta minada por interesses alheios aos interesses colectivos, e que mais não foi do que um conjunto de “tiros no pé”. Apesar do relativo sucesso da implementação das unidades de saúde familiar (USFs), não houve em Portugal, nos últimos 20 anos, outras reformas estruturais que dessem bons resultados, ou que motivassem os profissionais e os utentes.

Com o crescimento dos grupos privados de saúde, o SNS tem perdido utentes. Mas que utentes? Precisamente os que têm mais recursos económicos e sociais para exigir cuidados de saúde de qualidade. Ao perdê-los, o SNS perde o motor da exigência: perde aqueles que poderiam fazer mais pressão para exigir melhor funcionamento; aqueles que, por via do seu poder económico, social e político, estão em melhores condições de fazer ouvir a sua voz e usar os mecanismos mais eficazes para forçar mudanças no sistema.

A actualização do sistema de saúde não pode depender só de actos impulsivos gerados por crises, como a que estamos agora a viver. É fundamental criar mecanismos que permitam ao sistema corrigir-se por dentro, de forma contínua, sem depender de impulsos externos, sempre fortuitos e de resultados incertos.

Veja-se a forma como os hospitais são geridos. Na prática, funcionam como fortalezas: as suas administrações são nomeadas pelo governo, e é a este que devem explicações. Não há mecanismos eficazes de pressão externa. A única motivação das administrações é manter os seus lugares ou serem nomeadas para outro hospital. Os directores dos serviços (médicos) têm apenas funções clínicas e dependem das administrações. Os restantes administradores, em funções mas fora dos conselhos de administração, têm um papel muito frágil, responsáveis por áreas funcionais que, na prática, não conseguem “administrar”. 

Embora a iniciativa de discutir e aprovar uma nova Lei de Bases da Saúde seja positiva, e permita relançar o debate sobre a saúde em Portugal, nem só desta lei depende o SNS. A actual discussão sobre a saúde é uma porta aberta para relançar o debate sobre o funcionamento dos órgãos hospitalares.

O estatuto dos hospitais e centros hospitalares E.P.E. (Anexo II ao D.L. n.º 233/05, de 29 de Dezembro, alterado e republicado pelo D.L. n.º 12/2015, de 26 de Janeiro) prevê a existência de um conselho consultivo, a quem cabe controlar o funcionamento dos hospitais. Esses conselhos não só têm poucos poderes efectivos como são pouco visíveis no dia-a-dia dos hospitais. Não geram pressão transformadora e não conseguem representar de forma eficaz os profissionais de saúde e os utentes.

Se houvesse nos hospitais E.P.E. uma assembleia geral nos moldes habituais da lei, o Estado, único accionista, seria a única parte representada, não existindo contraditório. Foi para evitar esta situação que foi criado o conselho consultivo, em substituição da figura legal da assembleia geral, parte integrante dos estatutos de empresas, associações, etc.

Dada a ineficácia do conselho consultivo, a criação de uma assembleia geral em cada hospital, com poderes efectivos e um funcionamento aberto e transparente, é uma medida necessária e urgente. Mas que assembleia geral? Assembleias compostas pelos directores dos serviços, pelos enfermeiros-chefes, pelos presidentes das juntas de freguesia das áreas abrangidas pelo hospital, e pelos utentes (em percentagem inferior a 5% da assembleia). Este órgão teria de reunir mensalmente, de porta aberta, aprovar o orçamento anual do hospital, apreciar e votar medidas que representassem mais de 3% do orçamento global da instituição. Além disso, poderia aprovar recomendações ao conselho de administração (C.A.), teria de ouvir em audiência prévia e aprovar ou reprovar os administradores nomeados para o C.A., poderia demitir o C.A. com maioria qualificada.

A existência de assembleias gerais nos hospitais conferiria um papel mais relevante aos profissionais de saúde (valorizando a actuação dos directores dos serviços e restantes profissionais, cada vez menos ouvidos e em desmotivação crescente), aumentaria a transparência no funcionamento dos hospitais, tornaria a informação e as propostas mais acessíveis à população respectiva. Em suma, seria um instrumento essencial de mudança contínua do SNS e uma plataforma de diálogo e comunicação.

A criação de uma assembleia geral não é um acto revolucionário, mas apenas a transposição para o sistema hospitalar de um órgão que faz parte integrante da vida normal de muitas instituições e empresas.

Assuntos como as listas de espera, a degradação das condições logísticas de funcionamento, a falta de profissionais (este ano serão 1200 os médicos sem acesso à especialidade!), as deficiências orçamentais, a perda de capacidade de produção, as deficiências das instalações, etc., não são responsabilidade directa dos ministros da Saúde, pois tal seria materialmente impossível. Com as assembleias em cada hospital, estes problemas diários passariam a ser discutidos num local próprio, de modo a responsabilizar as partes directamente envolvidas, como o C.A., os directores dos serviços e os outros administradores hospitalares. Só um acompanhamento contínuo, capaz de identificar os problemas e de aprovar medidas imediatas e eficazes poderá fazer a diferença na saúde em Portugal.

Aguarda-se uma revolução na saúde em Portugal. Quando vier, não será o início de nada, mas antes o culminar de diversas alterações estruturais em curso há mais de 30 anos.

Como médico e como cidadão, não quero viver num país sem um SNS realmente eficaz e universal. A quem não trabalha na saúde alerto: não queiram experimentar a câmara de horrores que é viver num país sem um sistema de saúde público!

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