Palavras estrangeiras do idioma que tem o mar pelo meio

“Continuação” eu desejo ao encerrar uma chamada telefónica; em gratidão, do outro lado, a voz me diz “bem-haja”. Mas se o assunto é da maior importância, melhor que venha falar “à minha beira”. Se não tem urgência, fica “p’a semana” e, então, vou “ter consigo”.

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Diego García/Unsplash

Venho pensando sobre a língua espalhada, adaptada, ressignificada por tanto mar. Os meus colegas portugueses dizem que eu falo brasileiro, brasileiro que eles aprenderam assistindo às repetições de Tieta do Agreste e todas as outras novelas mais globais. Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu que é no português do Brasil que as palavras recuperam a sua substância total. Há umas semanas, ouvi Milton Nascimento cantar em dueto com Carminho: as sílabas no português de Bituca não perderam um quinto de vogal.

Mas, olha, as palavras e as expressões aqui em Portugal têm outra textura — se é que isso é possível. E tem um tanto delas que parece ainda estar à deriva na longa viagem do Atlântico. Talvez seja também por isso que o português são vários, um contínuo em palavras estrangeiras faladas em uma só língua. Eu aprendi a dizer “força” a quem quero dar prioridade — da passagem, do lugar, da palavra.

E se a palavra soa bem aos meus ouvidos, ela me “enche as medidas” – embora “um bocadinho” seja sempre a mais simpática das quantidades. “Continuação” eu desejo ao encerrar uma chamada telefónica; em gratidão, do outro lado, a voz me diz “bem-haja”. Mas se o assunto é da maior importância, melhor que venha falar “à minha beira”. Se não tem urgência, fica “p'a semana” e, então, vou “ter consigo”.

“Festinhas” a gente faz em criança que se “magoou”, não por ressentimento, mas por joelho esfolado em brincadeiras de moleque — que aqui é “puto” e puto não é palavrão. Palavrão também não é “cu”, por vezes chamado de “rabo”, que é onde a gente toma injecção. Desconfortável como injecção no rabo é perceber que a palavra usada tem outro significado. Um lembrete: não procurar por Durex no ambiente de trabalho porque, aqui, Durex não é coisa para ambiente de trabalho.

“Pequeno-almoço” é refeição atenta aos tempos do café: manhãs de pressa não contemplam fervura, aroma, apreciação, partilha e conversas de bom dia. As horas do dia eu conto em “quartos”; os quartos da casa eu conto em “T”. É na janela do meu T1 que me distraio com as cores do Sol de Verão que ainda se impõe às nove menos um quarto. Distracção faz o café “arrefecer”, café que arrefece “serve a nada” — mas não tem mal, o calor convida a “tomar uns copos”.

Quando entendo eu “percebo”, mas, se não, talvez ainda me falte “olhar com olhos de ver”. Foi assim que eu percebi que a palavra registro é falada e escrita sem o “r”. São os registos da memória que afagam o coração sentido pelo “desaparecimento” de alguém. Desaparecer é o destino de todos os portugueses, é não mais poder dar notícias e deixar saudade — que é a mais sólida das palavras, comum a toda gente falante do idioma que tem um mar pelo meio.

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