Famílias ciganas que andam de carroça foram à aula de código da estrada
Ciclicamente acontecem acidentes entre carroças e automóveis com vítimas mortais. Os condutores de viaturas com tracção animal não têm nem podem obter carta de condução mas conhecer o código pode salvar vidas.
Os acidentes são recorrentes e recentemente houve uma vítima mortal devido a uma colisão entre uma carroça de uma família cigana de Beja e um automóvel. Desde aí, as autoridades apertaram o cerco e começaram a retirar animais a quem mora no Bairro das Pedreiras. Mas os cavalos são muitas vezes o único meio de transporte que as famílias têm. Para minorar os problemas, duas associações foram dar uma aula de código e descobriram que alguns sinais de trânsito eram um perfeito mistério para quem os ouvia.
Um caso concreto estava mesmo ali à mão para explicar o contencioso que persiste entre famílias ciganas que recorrem ao meio de transporte puxado por animais e os outros condutores automobilizados: Era de manhã e uma família cigana, um casal com quatro filhos menores, lotava uma pequena carroça puxada por uma mula que troteava e tropeçava na calçada da Avenida Fialho de Almeida, uma das principais artérias da cidade de Beja. A lentidão do pobre bicho, a quem não podia ser exigida mais velocidade, exasperava os mais impacientes: “Tira essa m… do caminho”, barafustavam os que não queriam ficar retidos no sinal vermelho umas dezenas de metros à frente, enquanto outros buzinavam para reforçar a veemência dos impropérios que visavam o condutor da pequena carroça.
“Este é o meu transporte”, explicou o homem ao PÚBLICO. Na parte de trás da pequena carroça seguiam as quatro crianças, a mãe, uma bilha de gás, batatas, água, carne e outros alimentos, que foram comprar a uma superfície comercial que fica no lado oposto ao Bairro das Pedreiras, onde se concentra a maior comunidade cigana do Baixo Alentejo - cerca de 800 adultos e crianças. “O senhor diga-me como é que eu posso vir à cidade buscar o que preciso se não trouxer uma carroça para transportar o que comemos e o que precisamos” quando a distância a percorrer é de quase cinco quilómetros. Diz que não tem carta de condução, mas que o animal está legalizado e tem chip de identificação.
Até há cerca de dois meses atrás deslocava-se ao longo da variante exterior de Beja, percorrendo uma distância menor, mas depois do acidente que matou uma senhora de 55 anos, no início de Maio, quando conduzia o seu automóvel e chocou de frente, na faixa de rodagem, com um cavalo atrelado a uma carroça, passou a circular pelo interior da cidade onde, refere, “têm mais segurança”.
Depois deste acidente, e como aconteceu noutras situações análogas, as autoridades intensificam o controlo sobre as famílias ciganas que se fazem transportar de carroça e sobre os animais que apascentam junto à rede viária. A comunidade cigana do Bairro das Pedreiras passou nos últimos meses a contar com a presença mais assídua das autoridades e houve a apreensão de animais, decisão que veio dificultar a locomoção de quem ali habita. “Temos, nesta comunidade, um grande número de viúvas que não têm condições para transportar os sacos com a comida que compram, cidade abaixo, ao longo de quilómetros”, explicou Prudêncio Canhoto, presidente da Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), ao PÚBLICO.
O recurso está no uso de carroças puxadas por animais mas estes têm vindo a ser retirados e “junto ao bairro está um camião para levar mais”, critica o presidente da AMEC que participou, nesta terça-feira, com o Núcleo Distrital de Beja da Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) numa “aula de código” para as famílias ciganas no Bairro das Pedreiras. Orlando Silva, um jovem cigano, elaborou um folheto explicativo baseado em imagens destacando uma frase: “Mais vale prevenir que remediar” até porque “não há legislação sobre tracção de carroças puxadas por animais”, explica Anselmo Prudêncio, técnico da EAPN.
Crianças e adultos rodeavam os “formadores” para ouvir as suas explicações sobre a condução em segurança nas estradas. O folheto primava pelas imagens que explicavam como se devia circular numa carroça e o que se devia evitar. Meia dúzia de sinais de trânsito completavam a explicação.
“A reacção ao folheto revelava um misto de surpresa e de desconhecimento de alguns dos sinais de trânsito escolhidos”, observa o técnico da EAPN. Com um dedo apontava para as imagens que indicavam o que eram procedimentos errados e aqueles que deveriam ser seguidos. Consciente do valor da mensagem, Anselmo Prudêncio frisava ao PÚBLICO que “com textos escritos não se ia lá”. O caminho passa por insistir nos esclarecimentos. As palavras só devem explicar o essencial.
Algumas das imagens provocavam sorrisos, como aquela em que o peso da carga era tal que o animal ficava no ar e outra de uma carroça a pretender ultrapassar uma viatura Mercedes. Já tinha acontecido a alguns dos que ouviam a explicação. Já as imagens que retratavam o choque entre animais e viaturas deixavam os rostos fechados.
No entanto, está por resolver outro problema de fundo: as comunidades ciganas que fazem do nomadismo o seu modo de vida ou usam os animais como meio de transporte não foram contempladas na legislação em vigor que estabelece as normas regulamentares para a retenção de animais (Portaria n.º 634/2009). Os seus donos “têm de ter um sítio para o seu aparcamento”, observa Prudêncio Canhoto. E quando estes procuraram junto da Câmara de Beja a obtenção de autorização para reter os animais, esta não foi dada.
“E agora temos as pessoas assustadas com medo que as autoridades lhes levem os animais”, como aconteceu a Cassiano Silva, a quem lhe retiraram três cavalos por não ter espaço para os manter apesar de viver no Bairro das Pedreiras, contesta o presidente da AMEC, lembrando que se trata de famílias pobres que “não têm dinheiro para comprar ou alugar terra para manter os bichos”.
O PÚBLICO pediu esclarecimentos ao presidente da Câmara de Beja mas não obteve resposta.