Até quanto aguentará Rosselló, o governador que ofendeu Porto Rico?
Centenas de milhares de pessoas pedem nas ruas a demissão de Ricardo Rosselló, depois da divulgação de mensagens privadas com ofensas a opositores e piadas de mau gosto sobre vítimas do furacão Maria. A meio de um processo de falência, o território dos EUA afunda-se cada vez mais num clima de tensão social.
Ao fim de meio século de uma permanente crise financeira alimentada por uma dívida galopante, pela grande recessão de 2008 e por um furacão que matou mais de 3000 pessoas há menos de dois anos, os habitantes da ilha de Porto Rico parecem ter perdido a paciência com os seus governantes. O copo cheio transbordou nas últimas semanas e levou centenas de milhares de pessoas para as ruas. Primeiro, foi revelado um esquema de fraude com milhões de dólares destinados à reconstrução do território após a passagem do furacão Maria; dias depois, o governador do território, Ricardo Rosselló, foi apanhado em conversas telefónicas a fazer piadas com os corpos das vítimas e a ofender mulheres e homossexuais.
Os protestos pela demissão de Rosselló têm crescido de dia para dia, e na noite de segunda-feira a polícia usou gás lacrimogéneo e balas de borracha para dispersar a multidão que tinha cortado uma auto-estrada na capital, San Juan, e que mais tarde se juntou em frente à residência oficial do governador, conhecida como La Fortaleza.
Lá dentro, Ricardo Rosselló, um engenheiro biomédico eleito em Novembro de 2016 com a promessa de atacar a crise com uma “abordagem científica”, não deu sinais de ceder à pressão popular. Pelo menos até esta terça-feira, manteve-se fiel à declaração que fez no domingo: vai abandonar a liderança do seu partido e promete não se recandidatar nas eleições do próximo ano, mas não se demite.
“Uma grande parte da população não está contente e eu admito isso”, disse Rosselló no domingo à noite, num vídeo transmitido em directo nas redes sociais. “Eu ouvi-vos, e hoje tenho a responsabilidade de concentrar as minhas forças para encontrar alternativas e para seguirmos em frente, com a ajuda de Deus.”
"Desejoso de matar"
Mas o governador de Porto Rico não se referia à profunda crise financeira e social que tem afectado esta ilha do Mar das Caraíbas, administrada pelos Estados Unidos da América como um território não incorporado, onde a Constituição norte-americana não se aplica na totalidade e o sistema eleitoral é diferente. (O seu membro na Câmara dos Representantes dos EUA pode participar na elaboração de leis, mas não pode votar nelas; e os seus eleitores podem escolher os candidatos dos partidos à Casa Branca, mas não votam na eleição geral).
No dia 13 de Julho, a organização sem fins lucrativos Centro de Periodismo Investigativo publicou no seu site 889 páginas de mensagens trocadas entre Rosselló e outros 11 homens do seu círculo mais próximo.
Numa dessas mensagens, trocadas através de uma aplicação para smartphones, Rosselló fala em termos ofensivos de uma antiga presidente do conselho legislativo da cidade de Nova Iorque, Melissa Mark-Viverito: “Devíamos sair em defesa do Tom e dar cabo dessa puta.” Em causa estavam as críticas de Mark-Viverito ao presidente da direcção do Partido Democrata, Tom Perez, que apoia a elevação de Porto Rico ao estatuto de estado norte-americano de pleno direito.
Numa outra troca de mensagens, o ex-conselheiro de assuntos financeiros do governo de Rosselló, Christian Sobrino Vega, diz que está “desejoso de matar” a presidente da Câmara de San Juan, Carmen Yulín Cruz – uma frequente crítica do governador. “Era um grande favor que me fazias”, respondeu Ricardo Rosselló.
Entre os registos das mensagens há também uma referência ofensiva ao cantor porto-riquenho Ricky Martin, o que levou vários artistas nascidos no território, incluindo o próprio Martin e o criador do musical Hamilton, Lin-Manuel Miranda, a participarem nos protestos.
“Ninguém representa mais a opressão do patriarcado do que o Ricky Martin”, escreveu Sobrino Vega. “O Ricky Martin é um homem chauvinista que só fode homens porque as mulheres não estão à sua altura. Patriarcado puro.”
Mas a mensagem que mais indignou a população de Porto Rico diz respeito às vítimas do furacão Maria, que fez mais de 3000 mortos e arrasou grande parte das infra-estruturas da ilha em Setembro de 2017, que ainda estão longe de voltarem ao normal.
“Já que falamos nisso, não temos alguns cadáveres para darmos aos corvos? É evidente que eles precisam de atenção”, disse Sobrino Vega, referindo-se aos críticos do Governo.
Corrupção e bancarrota
A revolta contra a demora na reconstrução do território já tinha atingido um ponto alto dias antes da divulgação das mensagens, quando o FBI anunciou a detenção de duas antigas responsáveis pela Educação e Saúde. Julia Keleher e Ángela Ávila-Marrero, que saíram do Governo em Abril e Junho, respectivamente, foram acusadas por um tribunal federal norte-americano de entregarem projectos de reconstrução no valor de 15 mil milhões de dólares (13 mil milhões de euros) a empresas de amigos e apoiantes políticos, de forma ilegal e sem que algumas dessas empresas tivessem capacidade para cumprir os contratos.
Como pano de fundo, o território está no meio de um processo equivalente a uma declaração de bancarrota, depois de ter deixado de conseguir pagar a sua gigantesca dívida de 123 mil milhões de dólares a partir de 2015.
Durante décadas, a dívida de Porto Rico foi muito procurada pelos fundos de investimento porque beneficiavam de uma isenção fiscal que não existe nos estados norte-americanos de pleno direito. Isso, e os limites impostos por Washington, nas últimas décadas, ao financiamento do sistema de saúde do território e às isenções fiscais, transformou a crise da dívida numa bola de neve – que cresceu até ao máximo com a crise mundial de 2008 e com os prejuízos provocados pelo furacão Maria, estimados em mais de 90 mil milhões de dólares.
Tudo isto num território onde quase metade da população vive abaixo do limiar da pobreza, uma situação que se agravou com a ida de centenas de milhares de habitantes para estados norte-americanos nos últimos anos (levando consigo os seus impostos) e onde a taxa de desemprego ultrapassa os 12%, mais do dobro da média nos EUA.