Saúde e trabalho deixam “geringonça” às avessas em fim de festa
Parlamento fechou últimos processos da legislatura. Barrigas de aluguer são uma lei sem eficácia e devem voltar ao Tribunal Constitucional – para onde, à esquerda do PS, se promete enviar a revisão laboral.
Os partidos à esquerda conseguiram que a legislatura chegasse ao fim sem grandes sobressaltos, mas este final deixa um amargo de boca a bloquistas e comunistas. Forçados a ajudar o PS a aprovar uma nova lei de bases da saúde para não carregarem esse ónus para a campanha eleitoral – diploma que, no entanto, remete para compromissos desconhecidos -, os parceiros ainda viram os socialistas aliarem-se ao PSD na área que mais lhes dói: a legislação laboral. Uma mão cheia de muito pouco, como aquelas que os sindicalistas presentes nas galerias levantaram contra os deputados quando se anunciou que a proposta laboral do PS estava aprovada com o voto da direita, quase a fazer lembrar os protestos no tempo da troika.
Nas nove horas de plenário (com uma de pausa para almoço), além destes dois temas quentes, o Parlamento aprovou matérias que estiveram a ser debatidas ao longo de vários anos, como a gestação de substituição ou o pacote da transparência (foi criada a nova entidade e o código de conduta dos deputados), e reprovou outras a que os partidos já admitem voltar depois de Setembro. Como o lobbying, em que o PSD mudou o sentido de voto para chumbar as alterações do PS e CDS propostas para superar o veto.
E é também o caso de uma das raras incógnitas da tarde: acabou por ser aprovada uma alteração à lei da gestação de substituição que confere mais deveres e direitos à gestante, mas amputada da questão essencial do prazo para o seu arrependimento, o que torna a lei ineficiente. Ainda assim, o CDS prometeu logo que vai, de novo, levar o diploma das chamadas barrigas de aluguer ao Tribunal Constitucional por considerar que nunca será possível assegurar todos os interesses.
Embora o PSD tenha dado liberdade de voto aos deputados na votação da lei na generalidade – os 22 que votaram a favor permitiram aprová-la porque à esquerda o PCP manteve-se a voz dissonante de PS e BE e votou contra -, a direcção da bancada impôs depois disciplina no artigo específico sobre o arrependimento que o Bloco avocou. E nenhum deputado, nem mesmo os que já não contam ter lugar nas listas das legislativas, a contrariaram. O resultado foi a aprovação de uma lei ineficaz porque o regime não ultrapassa a inconstitucionalidade de não existir um prazo para a mulher que gera o bebé poder desistir de o entregar.
Leis laborais passam, mas geram tensão
A convergência entre o PS e a direita para aprovar as alterações ao Código do Trabalho acabaram por gerar um ambiente de tensão entre o PCP e BE, de um lado, e os socialistas, do outro. O PS ficou sozinho a votar a favor e beneficiou da abstenção do PSD e do CDS para o viabilizar. Já os comunistas, bloquistas e PAN votaram contra.
Nas declarações políticas, Rita Rato começou por listar propostas do PCP chumbadas pelos socialistas e desafiou os deputados a fazer parte “do lado certo da história”. Já José Soeiro (BE) considerou o desfecho do processo de revisão laboral uma “aliança regressiva” e responsabilizou o PS por deixar na lei as marcas da troika. Não ficou nada da esquerda no diploma final, afirmou, lamentando que os socialistas tenham chumbado medidas do BE que tinham aprovado na generalidade (como a que facilitava a contestação dos despedimentos).
Wanda Guimarães (PS) indignou-se: “O PS é de esquerda. Lastimável é que PCP e BE tivessem votado contra todas as propostas do PS que pretendiam suavizar aspectos problemáticos [da proposta de lei do Governo].” À direita, PSD e CDS frisaram que as alterações à lei laboral não eram necessárias, mas que foram os parceiros sociais que lhes deram luz verde para assegurar que esse acordo permanecia intacto através das suas propostas.
PCP, BE e PEV não vão desistir e ficou a promessa de, caso o Presidente da República o promulgue, enviarem a legislação laboral para o Tribunal Constitucional.
Mal-estar na saúde
A maioria de esquerda entendeu-se para confirmar em plenário a aprovação de uma nova Lei de Bases da Saúde. O texto prevê que o actual diploma que regula as PPP seja revogado quando um futuro Governo, no prazo de 180 dias, produzir nova legislação sobre a gestão privada dos hospitais. Para PCP e BE, esta solução permite travar o desenvolvimento de PPP no futuro. Já o PS assegura que a gestão privada de hospitais não está vedada e será possível. O diploma terá agora de passar no crivo do Presidente da República que já disse esperar pela lei, em Agosto, não antecipando posição.
A “geringonça” funcionou também na eliminação das taxas moderadoras nos cuidados primários de saúde, em que PS, PCP, BE e PEV concordaram que os termos dessa dispensa sejam definidos em diploma de execução orçamental, ou seja, por um futuro Governo.
Noutro diploma no campo da saúde foi uma coligação negativa a funcionar. As bancadas do PSD, CDS, PCP, BE e PEV juntaram-se para aprovar um projecto de lei que reforça a autonomia financeira dos hospitais, permitindo contratar pessoal e fazer investimentos sem esperar pela autorização do ministro das Finanças. Como salientou a deputada do CDS-PP Isabel Galriça Neto, autora do projecto original, o diploma pretende “travar vetos de gaveta” de Mário Centeno.
Outra questão que ligou os extremos do Parlamento foi a aprovação da cessação da vigência do decreto do Governo que transferiu para as autarquias competências na área da protecção animal e segurança alimentar.
A esquerda juntou-se para aprovar as propostas do PCP e do Bloco para que os manuais escolares para todos os alunos do ensino público até ao 12º ano passem a ser gratuitos (com a abstenção do PSD e o voto contra do CDS).
Sem surpresas, foram aprovadas por unanimidade a proibição do uso de loiça descartável a partir de 2022 (mas nos festivais e feiras já dentro de um ano), tal como de cuvetes e sacos de plástico ultraleves para pão, frutas e legumes a partir de 2023; e a proibição de deitar beatas para o chão com as respectivas multas.
Foi aprovada uma lei que estabelece mecanismos de regularização de dívida por falta pagamento de propinas no ensino superior. O PS ficou sozinho a votar contra a alteração ao regime jurídico da avaliação do ensino superior proposta pelo PSD, que beneficiou da abstenção do Bloco e do PCP.
Entre uma longa lista de projectos de resolução, foi aprovado pelas restantes bancadas e contra a vontade do PS uma recomendação ao Governo proposta pelo PSD para que aquele avalie e reveja o regulamento das custas processuais.
Com Raquel Martins