“Dê-me a mão, sr. banheiro”
Em Quarteira, as cabanas de juncos dos pescadores deram lugar a blocos de apartamentos. O que resta da terra do Conde de Azambuja? Esta é a primeira reportagem de uma série que conta histórias antigas de praias emblemáticas.
A época balnear abria pelo São João, dia da celebração do “banho santo”. O acontecimento atraía gentes da serra até ao mar, e as imagens de 1965 ainda mostravam um areal a perder de vista. Os banheiros ou nadadores-salvadores recebiam 5$00 por cada banho. “Só tinham que segurar as pessoas pelas mãos e fazê-las mergulhar ao mesmo tempo. Claro que não sabiam nadar...”, descreve Joaquim Rodrigues, mestre em História Contemporânea e autor do livro “Quarteira, um olhar sobre o passado”.
Quarenta anos antes, a praia de Quarteira era um lugar a evitar. “Uma modesta praia de banhos, frequentada sobretudo por famílias do concelho de Loulé [ ...] é infelizmente prejudicada pelas más condições higiénicas”, retratava Raul Proença, no “Guia de Portugal”, em 1927. O receio das doenças infecciosas (paludismo), transmitidas pelas picadelas de mosquitos que povoam os pântanos, afastava os veraneantes da praia onde hoje 700 mil euros não chegam para comprar um apartamento T2 na primeira linha do areal.
O Algarve na época pré-histórica do turismo era uma terra distante, situada para lá das serras do Caldeirão. Aquando da realização do congresso internacional do sector turístico, em 1953, em Lisboa, por iniciativa da Organização Internacional dos Organismos Oficiais de Turismo, as praias do sul ainda não tinham entrado nas rotas dos viajantes. Os visitantes estrangeiros que participaram nesse evento, apenas visitaram Lisboa, Fátima, Évora e Madeira. “Não vieram ao Algarve, porque a região não era ainda, de acordo com a política oficial de turismo, um destino turístico importante para o estrangeiro”, descreve Joaquim Rodrigues. Na faixa litoral, onde existiam cabanas e barracas cobertas de juncos, encontra-se hoje uma linha contínua de blocos de cimentos, desenhados à maneira dos novos donos da praia.
A construção da marina de Vilamoura, concluída em 1974, trouxe o turismo dos iates, mas, também, o acelerar da erosão da costa até à praia de Faro. As terras de Quarteira, no século XIX, pertenciam a um dono quase único, o Conde da Azambuja, proprietário da “Quinta de Quarteira”, actualmente Vilamoura – empreendimento nas mãos do fundo financeiro Lone Star (Novo Banco). A memória da antiga vila piscatória, com zonas húmidas, envolvidas por juncos, regressou no tempo presente com o projecto da construção de uma “cidade lacustre”, em Vilamoura. Para viabilizar a proposta, a Agência Portuguesa do Ambiente impôs como condição que os três lagos a construir fossem alimentados com água salgada. O perigo da ameaça dos mosquitos volta estar presente, com as alterações climáticas.
A Fonte Santa de Quarteira, que remontará até à época romana, funcionou também como atractivo turístico. A esta nascente, situada próximo de Loulé Velho, refere Joaquim Rodrigues, rumavam “muitos doentes pobres do Algarve e do Alentejo, que ficam entusiasmados com os casos de cura que ouviam relatar”. A fonte quase secou, e em redor cresce um empreendimento turístico. A paisagem urbana mudou. Chegaram culturas vindas de outras latitudes. Porém, a “alma” da terra, dizem os pescadores, ainda reside nas gentes do mar.
Em 1971, relata Joaquim Rodrigues, havia cerca de 120 embarcações à vela e a remo. O numero de pescadores rondava os 300. Tudo lhes faltava: armazéns para guardarem os apetrechos, lota e um bairro de casas económicas. Durante gerações, os barcos foram alados para terra, à custa do esforço de homens, mulheres e crianças. Melhoraram as condições de trabalho (foi construído um porto de pesca) mas o mercado de venda do pescado não passa de um barracão.
À semelhança das praias da Rocha e Monte Gordo, lembra o historiador, Quarteira teve também o seu Casino, inaugurado em 1931. As classes mais pobres ocupavam o rés-do-chão do edifício, estando o 1º andar reservado para a “elite”. A distinção de classes, prossegue, fazia-se sentir, de igual modo, na esplanada, palco dos artistas em voga, à época – Amália Rodrigues, Francisco José, entre outros.
O cantor Dino D’ Santiago, que viveu no antigo bairro dos pescadores ou bairro da lata, pertence à nova geração dos filhos da terra. Criou o movimento “Sou Quarteira”, e em Agosto vai ser o cabeça de cartaz de um festival ligado à música e à presença constante do mar. Por outro lado, o fotógrafo Nuno Graça reúne centenas de fotografias e documentos antigos da velha Quarteira, a aguardar aprofundamento dos estudos e publicação.