O Bonifácio da dúvida
O dia da opinião certa, o dia da opinião autorizada, será pior que tudo o que a autora escreveu.
“Não concordo com nada do que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres.” Esta frase – ou a ideia por outras palavras – era a citação clássica de Voltaire. Ouvimo-la dezenas de vezes, usada por quase todos, em casos como o último artigo de Maria de Fátima Bonifácio (“Podemos? Não, não podemos”) e na tempestade que gerou.
Lendo o texto, ofensivo para muita gente, percebe-se o temporal. No debate enfurecido, a frase clássica foi substituída por outra: “Ser intolerantes com os intolerantes. Tolerância zero.” Muitos trataram não só de fustigar o texto, mas de zurzir pessoalmente Fátima Bonifácio e exigir silenciamento, segregação, irradiação, proibição e castigo.
Entre a preponderância de uma ou outra das ideias nas duas frases parece que iriam um ou dois séculos de distância. Em Portugal, vão apenas dez anos. O que se passou para, em tão curto espaço de tempo, sermos tão diferentes na cultura quanto à liberdade de expressão?
A frase de Voltaire não é dele. É um daqueles casos de citações muito correntes, mas de autoria errada. Segundo as referências que podem colher-se, pertence a uma biógrafa de Voltaire, Evelyn Beatrice Hall, que, sob o pseudónimo Stephen G. Tallentyre, quis ilustrar o pensamento do filósofo. A equívoca autoria da frase não poderia ser dos dirigentes do SOS Racismo ou dos 14 notáveis (incluindo jornalistas e ex-procuradores!) que, levando o zelo persecutório à barra dos tribunais, anunciaram instaurar processos-crime contra Fátima Bonifácio. Se fosse destes a autoria, a filosofia de Voltaire seria outra: “Não concordo com nada do que dizes e defendo até a morte o direito de te amordaçar e punir.”
Tenho curiosidade em ver como se desenrolarão estes processos. Terei curiosidade em ver como se pronunciará o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, se o caso aí chegar. É muito importante sabermos o espaço e o tempo em que realmente vivemos. Sociedade liberal?
Lamento observar que, no espaço público, entre os que animam a pressão censória se encontram não só militantes e activistas, mas jornalistas, esquecidos (pelo menos, por um momento) de a liberdade de expressão ser a ferramenta fundamental do jornalismo e a sua compressão não costumar ter recuo, senão com custo muito elevado. O texto de opinião de Fátima Bonifácio não pede repressão, mas contestação vigorosa – como surgiu e ecoou. O contrário é a negação da sociedade e do regime de liberdade. Não podemos querer isso. O dia da opinião certa, o dia da opinião autorizada, será pior que tudo o que a autora escreveu.
Fátima Bonifácio, historiadora credenciada, não se deu talvez conta de barbaridades que escreveu, como a ideia de africanos e ciganos não serem parte da Cristandade, nem descenderem dos Direitos Universais do Homem, ou os ciganos serem inassimiláveis e os africanos e afro-descendentes se auto-excluírem da comunidade nacional e serem abertamente racistas. Pode ter sido má disposição, uma tarde infeliz, um eco azedo de conflitos académicos. Ou apenas o direito universal ao disparate, assim como se dissesse “a bosta da bófia”. Mas escreveu realmente aquilo, gerando viva discordância e repúdio. A sua posição contra quotas raciais ficou soterrada pelo destempero.
O problema é sério: seja o racismo, sejam estratégias que não lhe respondem e o agravam. Nos últimos anos, temos assistido à ofensiva ideológica extremista contra a nossa História e a cultura nacional, buscando culpa, procurando caçar culpados, reclamando pedidos de desculpa a torto e a direito. É a ofensiva contra os Descobrimentos, uma estupidez de todo o tamanho – puro negacionismo, por sinal. É a gritaria contra a escravatura, como se fosse dos nossos dias e tivéssemos de pagar por ela. Tem sido nesta maré que entra a semeadura da dialéctica marxista (“a luta”) nas relações inter-raciais, desajustada, perigosa, contraproducente e potencialmente explosiva. A resposta à segregação é integração, não é a agressão.
O tema da escravatura é sintomático. Nada pode justificar as atrocidades do sistema escravocrata. É um rol terrível de violências que envergonha e magoa só de ouvir contar. É verdade que “brancos portugueses” foram parte. Como outros “brancos europeus”, parte do mesmo tráfico ignóbil. E outros “brancos brasileiros” ou doutras colónias europeias.
Mas também é verdade que a escravatura era corrente em África e “pretos africanos” foram parte no comércio com os europeus, capturando os escravos no interior, que, na costa, vendiam aos esclavagistas para alimentar o comércio transatlântico, o novo tráfico global. Não eram súbditos colonizados, esmagados pelo colono. Eram soberanos africanos, alguns de triste fama em matéria de escravatura, como o rei do Daomé.
Essa nódoa enorme na História da Humanidade foi abolida no século XIX, após o processo iniciado nos finais do século XVIII. Este é que é o facto mais importante a destacar: a escravatura, que existiu em todo o mundo, nas mais diversas culturas e civilizações desde antes ainda da Antiguidade, nunca fora abolida. Não acabara no fim do Egipto dos Faraós, nem na queda de Babilónia, nem no fim da Grécia Antiga, nem na queda do Império Romano, nem na ascensão e queda de vários reinos africanos, americanos, orientais ou europeus. Foi preciso que a escravatura, ignóbil e massiva, entrasse em contacto com os valores modernos do Ocidente, para se decretar o seu termo e impor a abolição à escala mundial. A consciência moral do Ocidente, que usava escravos, não a tolerou; e pôs-lhe fim. Isto é que é extraordinário e o notável facto universal. São deploráveis as tentativas esquerdistas de confundir as mentes e incendiar os espíritos, sem razão, nem contexto, empreendendo, depois do tempo, a libertação dos libertos, para semear ódio em vez de paz – “a luta”, sempre “a luta”.
Sou um luso-tropicalista encartado. Cresci nessa ideia. Acredito nela. Não nego nada da realidade que pareça desmenti-la, nem creio que essa fosse a ideia de Gilberto Freire – como pode um brasileiro negar a favela? Ou as desigualdades do seu tempo? Acolho o luso-tropicalismo como um olhar não só benigno, mas bondoso. Penso que é bom para o futuro e tem potencial conformador positivo. Um povo que diz de si mesmo não ser racista e se afirma e reconhece multiétnico é um povo comprometido com o que diz, isto é, a prová-lo e realizá-lo. Uma cultura que se crê mestiça e valoriza a capacidade de se enriquecer por receber, absorver, integrar é uma cultura boa, não só porque não segrega, mas porque acolhe e cresce. É assim que entendo a maneira de ser portuguesa e a nossa cultura. Creio que é mil vezes superior à doença obsessiva d'“a luta”, “a luta”, “a luta”. É a única forma de integrar. Em paz.
O combate à discriminação e a integração inter-étnica devem ser preocupação constante de um país como Portugal – até pela nossa História e geografia, que determinam muito do que fomos sendo. Os problemas raciais cruzam-se profundamente com os da pobreza, sobre que não podemos descansar. As estratégias educativas são fundamentais, mas o sistema está a falhar. As quotas não são solução, antes o problema petrificado. E falta representação social e política, ponto que sempre me surpreendeu e em que todos os partidos têm de agir.
Há dias, num colóquio parlamentar, a ministra da Justiça citou Gabriel Garcia Marques: “Uma pessoa só tem direito de olhar outra de cima para baixo, no momento de a ajudar a levantar-se.” É assim mesmo. Aplica-se nas questões de desigualdade. Também nas da liberdade.