Inteligência Artificial, 5G e geopolítica
O ciberespaço pode vir a ser menos americano e mais asiático. Esperemos que não aconteça. Porque uma era digital dominada pela China, cujo regime é uma ditadura, será mais fechada e controlada.
Depois de meses a ameaçar múltiplos países, incluindo Portugal, exigindo o fim da cooperação com a empresa chinesa Huawei, o Presidente Trump, na Cimeira do G-20 que decorreu em Osaka no Japão e depois de um encontro com o seu homólogo chinês, levantou as sanções à empresa chinesa e autorizou fabricantes americanos a vender-lhe equipamento. Durante meses ouvimos os falcões no Ocidente a cerrarem fileiras atrás do Presidente americano para se excomungar o novo perigo público.
Afinal os analistas como o CEO da Cisco tinham razão: era tudo uma tempestade num copo de água, o barulho era muito mas a substância pouca, no domínio da tecnologia avançada e das novas gerações das redes móveis 5G o que ia acontecer é que múltiplas empresas iam disputar a supremacia e no fim vai emergir um puzzle equilibrado em que a fabricação de equipamentos, as redes móveis, os sistemas core e as comunicações integram um mercado aberto partilhado pelos vários gigantes da inovação.
Os serviços secretos ingleses, que fazem a monitorização da Huawei no Reino Unido, também tinham avisado que a empresa não tinha registo de práticas ilegais e as preocupações manifestadas por muitos sobre a sua dependência do Estado chinês podiam ser minimizadas mantendo os serviços de segurança e defesa a salvo da sua intervenção. Mas então o que incomoda os EUA?
A resposta é simples: o que incomoda é o tamanho da China e a sua liderança tecnológica neste domínio. A Huawei, uma empresa que surgiu em 1987 nos arredores de Xangai e que que começou por vender telemóveis usados que vinham de Hong-Kong, converteu-se na empresa mais avançada do mundo na nova geração de redes móveis. A China representa hoje 25% do investimento em toda a investigação mundial o que é brutal. Desde 1999 a investigação na China cresceu em média 20% ao ano.
Em 2018 a China passou os EUA em termos de publicações científicas e isso arrasa a tese ocidental de que a China é medíocre e apenas copia. O centro tecnológico de Zhongguancun em Pequim é o Sillicon Valley chinês e alimenta o movimento de investigação na Inteligência Artificial (IA) superando em muitos domínios os EUA. As tecnologias em que a China mais avançada está — semicondutores, computação quântica e IA — são aquelas que vão formatar o futuro do ciberespaço. Só em 2016 a China importou 228 mil milhões de dólares de circuitos integrados isto é 90% do consumo mundial.
A computação quântica, como previu Richard Feynman, um dos mais geniais cientistas do século XX, vai ser o futuro da computação. Como se baseia em bits quânticos, os Qubits, que utilizam propriedades da física quântica, a computação é muito mais rápida porque além de assumir os estados “o” e “1” pode assumir ambos ao mesmo tempo devido à propriedade quântica da sobreposição, o que exponencia a velocidade e a capacidade de processamento. Tem outra vantagem decisiva: é muito mais segura e o risco de ciberataques é muito baixo porque quem se intromete no sistema é rapidamente detectado.
Formatar o ciberespaço e ainda por cima elevar a novos patamares a cibersegurança vai dar às superpotências digitais que o conseguirem uma vantagem competitiva decisiva. A China sabe disso e uma parte do seu plano passa por construir uma Rota da Seda Digital com cabos de fibra ótica, redes móveis, estações de satélite, centros de dados e cidades inteligentes. A nova geração de redes móveis 5G é crucial porque é a partir delas que se podem gerir as cidades inteligentes, a Internet das Coisas, o Big Data, todos os sistemas de processamento de informação.
As redes 5G vão permitir mandar em segundos para a nuvem biliões de dados, as máquinas inteligentes processam esses dados, extraem a informação, os padrões e o conhecimento e devolvem a interpretação ao seu ambiente real para operar a galáxia de aplicações à sua volta. Se os dados são o petróleo do século XXI a IA e as máquinas inteligentes são o combustível que alimenta as múltiplas aplicações.
Hoje na China já é possível vislumbrar o futuro da economia: a China já está muito à frente dos EUA como produtora de dados digitais, o fosso aumenta todos os dias, a China já é líder mundial na implementação da IA e está a mudar a sua economia com a galáxia de aplicações da IA a um mercado imenso onde a revolução se está a operar desde as reparações de automóveis, a mobilidade nas cidades, as entregas de comida, as vendas a retalho, com empresas que usam um volume imenso de dados processados pela IA e mudam sectores inteiros da economia a uma velocidade estonteante criando um novo paradigma industrial. A era dos dados pode não só revitalizar a economia como reinventá-la.
Neste quadro, como diz o analista Kai-Fu Lee, a China está no seu momento Sputnik, como a antiga União Soviética quando lançou o seu primeiro satélite em 1957 e desafiou a superioridade tecnológica americana. Só que a resposta americana hoje é errada e ineficaz. Não se pode combater a tecnologia com muralhas, ameaças, chantagens, guerras comerciais, perseguições e exclusões de mercados. A tecnologia é disruptiva, multidimensional e dinâmica e não se combate com a ordem mental do século passado criando uma Nato da Tecnologia ocidental para se opor a um Pacto de Varsóvia ou de Xangai da tecnologia oriental. Isso não funciona.
A resposta certa é a que deu o Presidente Kennedy no fim dos anos 60 respondendo ao Sputnik com mais ciência, mais investigação, mais tecnologia e com instituições como a NASA. Mas tudo isso está fora do quadro mental da actual administração americana e é por isso que os EUA podem correr o risco de perder a corrida tecnológica vital do século XXI.
O ciberespaço pode vir a ser menos americano e mais asiático. Esperemos que não aconteça. Porque uma era digital dominada pela China, cujo regime é uma ditadura, será mais fechada e controlada correndo o risco de realizar a distopia de George Orwell com um poder totalitário a gerir as tecnologias mais avançadas e a exercer a vigilância total dos cidadãos.
É isso que parece indiciar o projecto do governo chinês do chamado “crédito social” onde cada cidadão é punido ou premiado consoante o seu comportamento. A Internet e as tecnologias digitais nas mãos de um poder totalitário podem ser usadas para guiar e controlar a opinião das pessoas e identificar comportamentos além de contribuírem para melhorar a governança a todos os níveis e estimular o desenvolvimento económico.
Finalmente se olharmos para a geopolítica o que se passa hoje entre os EUA e a China é uma disputa clássica entre a potência dominante e a que está em ascensão. Já aconteceu múltiplas vezes na História como analisa Tucídides no livro “A Guerra do Peloponeso” com a disputa entre Esparta e Atenas. Como sabemos, nestas disputas pode acontecer aquilo a que hoje se chama a armadilha de Tucídides: na dinâmica de disputa que se cria há um momento que torna a guerra inevitável. Isso aconteceu na Grécia clássica com o famoso Édito de Megara em que Péricles recusou ceder a famosa colina que nem valor estratégico tinha.
Esperemos que hoje as guerras comerciais, as ameaças e chantagens, as discriminações e exclusões, a retórica narcisista ou as tiradas militaristas não façam entrar as duas grandes superpotências do nosso tempo na armadilha de Tucídides. Seria trágico para elas e para o mundo. O século XXI passa bem sem um novo Édito de Megara.