Contra a Banalização do racismo
Qualquer sociedade decente deve providenciar uma igualdade de oportunidades aos seus cidadãos que seja real, e não meramente letra morta.
O artigo de Fátima Bonifácio no PÚBLICO é a afirmação brutal, rara entre nós, de que o racismo está bem vivo em Portugal. Não se trata de uma opinião, como a secção onde foi publicado poderia indiciar, mas de uma declaração de ódio [racial] que se insere numa tendência mais vasta de ressurgimento da extrema-direita que em Portugal busca expressão política. O artigo rompeu com o património político da democracia portuguesa que tornou ilegítimo o discurso racista, mas não pode ser o “ovo da serpente” que, como no resto da Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, vemos vingar, emergindo, na cumplicidade e no medo, o nacionalismo identitário, ameaça séria às democracias liberais.
A sua evocação da superioridade da civilização ocidental inscreve-a nas correntes da supremacia branca, da extrema-direita. O artigo retoma, sem qualquer pudor, preconceitos contra ciganos e negros que séculos de intolerância, de medo pelo desconhecido e de violência colonial enraizaram na sociedade portuguesa. As suas afirmações racistas abrangem também os muçulmanos ao dizer, por ignorância, que impõem a prática da mutilação genital feminina.
Como em todos os discursos racistas, o artigo atribui aos ciganos e aos negros características essenciais, conferindo-lhes uma identidade única, excludente, construída sobre preconceitos e generalizações, que apresenta como prova da sua inferioridade. Repete os clichés sobre tribalismo e violência, tirados de livros do Estado Novo, e faz dos Direitos Humanos um privilégio da Cristandade, colocando-a não só em oposição frontal às posições da própria igreja que diz defender, como também aos das democracias liberais.
Relembremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu da tomada de consciência de que a tragédia e a barbárie da II Guerra Mundial tinham tido como causa o fascismo e a sua atitude de considerar inferiores (ao ponto de lhes negar o estatuto de pertença à Humanidade) todos aqueles que consideravam ser os “outros”, negando às suas culturas o contributo para a “civilização”. E faziam-no, é bom lembrar, em nome da alegada “superior” civilização ocidental.
Numa altura em que se multiplicam atos de discriminação racial por toda a Europa, a publicação em Portugal de um artigo tão obviamente racista não pode ser menosprezada. A luta contra o racismo tem de ser uma prioridade do governo e dos partidos políticos. Devem assim responder às preocupações das centenas de milhares de portugueses, com origem na imigração, a quem seria negado o direito de serem plenamente cidadãos da República por, alegadamente, não aspirarem à igualdade de direitos.
Qualquer sociedade decente deve providenciar uma igualdade de oportunidades aos seus cidadãos que seja real, e não meramente letra morta. Nesse contexto, comunidades que têm sido discriminadas historicamente devem ser objeto de especial atenção. E que a opinião contrária seja pretexto para um discurso racista diz muito sobre as intenções discriminatórias da autora.
Com o seu artigo, e na qualidade de professora universitária, FB procura conferir “legitimidade intelectual” aos racistas portugueses que se escondem no anonimato das redes sociais, temerosos do opróbrio que as suas posições acarretam.
É particularmente grave que declarações racistas, sem precedentes na imprensa no pós-25 de Abril, tenham sido publicadas por um jornal comprometido com os Direitos Humanos como o Público. Tal publicação facilita o processo de “banalização do racismo”, permitindo que ideias marginais, porque criminosas, se expandam e passem a ser consensuais em largos sectores da sociedade –a “banalidade do mal” de que falava Hannah Arendt. Só assim os nacionalistas identitários conseguem chegar ao poder pela via eleitoral e, uma vez eleitos, destruir as liberdades.
A liberdade de expressão não é argumento válido para defender a publicação de um artigo com conteúdo inequivocamente racista, pois o código penal português considera crime “Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional”. Para além de violar abertamente a linha editorial do jornal. Em suma: defender a posição que aqui assumimos não reside em qualquer preocupação com o suposto “politicamente correto”, mas com a defesa dos Direitos Humanos mais básicos.
É este o ponto a que chegamos: hoje, a defesa do caráter Universal dos Direitos humanos é o grande combate do nosso tempo, para que se evite uma situação semelhante à vivida na década de 1930 na Europa.
FB afirma que Nem uns nem outros [negros e ciganos] descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Ora, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [da Revolução Francesa] também proclama que os Homens nascem e são livres e iguais em direitos (…). O que, manifestamente, não descende da Revolução Francesa são os preconceitos dos racistas.
Álvaro Vasconcelos
Ana Benavente
Ana Drago
Irene Pimentel
João Teixeira Lopes
João Sebastião
Pedro Bacelar de Vasconcelos