Um espelho para três actrizes se pensarem como mulheres

Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Sílvia Filipe são As Três Sozinhas, três mulheres em reflexão íntima sobre a condição feminina. É um dos espectáculos de abertura deste 36.º Festival de Almada, a decorrer desta quinta-feira até 18 de Julho.

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Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Sílvia Filipe durante os ensaios cortesia filipe ferreira
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Quando reflectem sobre o que significa para as três ser mulher ou ser feminista, ser um corpo político ou em processo de envelhecimento, fazem-no como se estivessem sentadas a uma mesa de café cortesia filipe ferreira
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Por sugestão dos seus conselheiros artísticos, Alex Cassal e Judite Canha Fernandes, as três actrizes escreveram-se umas às outras cortesia filipe ferreira
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A primeira ideia que tiveram para levar para palco a sua amizade de 20 anos foi trabalhar a partir das Novas Cartas Portuguesas. Tal como as autoras originais, também elas eram três. Três actrizes de uma mesma geração a pensar a sua condição feminina no espaço do teatro. Só que a ideia inicial não vingou e começaram a expandir cada vez mais as referências que carregavam consigo, a munir-se de cada vez mais livros e modelos, até poderem traçar uma linha entre Medeia e as Pussy Riot, entre Joana d’Arc e Patti Smith, entre a madrasta da Branca de Neve e Marina Abramovic.

Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Sílvia Filipe foram-se rodeando de nomes, obras e citações para se pensarem enquanto mulheres. Até que, por sugestão dos seus conselheiros artísticos, Alex Cassal e Judite Canha Fernandes, voltaram à ideia das cartas – mas escrevendo umas às outras, com o intuito apenas de desbravar caminho, aproveitando para pensar através da escrita o que podiam dizer de novo sobre si a duas amigas com muita história partilhada.

É por aí que começa As Três Sozinhas, criação das três actrizes e directoras artísticas que estará em cena no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, desta quinta-feira e até 14 Julho, integrada no Festival de Almada. Sílvia Filipe a confessar que quis ser cantora por considerar que a voz era aquilo que tinha de melhor; Anabela Almeida a recordar o sonho do seu casamento perfeito que ainda está por cumprir; Cláudia Gaiolas a imaginar-se a versão feminina do seu tio Caetano, um homem que “desaparecia e depois voltava”. A partir desse momento, as três vão misturando um tom confessional e autobiográfico com excertos das obras que as inspiraram, dificultando a leitura desses momentos de transição, baralhando os dados entre aquilo que é pessoal e aquilo que não lhes pertence. Ou de que não são autoras, mas que lhes pertence também por inteiro.

Essas cartas, que começaram por ser um mecanismo de desbloqueio criativo, ganharam vida de palco no momento em que cada uma tentou dizer algo sobre si que tivesse ficado por partilhar em 20 anos de relação. E foram continuando a escrever-se, ao mesmo tempo que apresentavam textos de autoras que podiam integrar o espectáculo, criando uma zona de intimidade. Quando reflectem sobre o que significa para as três ser mulher ou ser feminista, ser um corpo político ou em processo de envelhecimento, fazem-no como se estivessem sentadas a uma mesa de café, sem filtros nem julgamentos. Quando palpam e comentam os seus corpos, falam da sua roupa interior, discutem a menstruação ou situações de abuso sexual, fazem-no sempre em confidência – e​ o público terá de se questionar se não estará a espreitar pelo buraco da fechadura. “Queríamos que não tivesse um aspecto formal”, explica Sílvia Filipe ao PÚBLICO, “que não parecesse estarmos a fazer um espectáculo para os outros assistirem”.

Tendo partido “à procura do poder na palavra no feminino – e do que isso podia representar”, explica Cláudia Gaiolas –, foram acumulando textos de Simone de Beauvoir, Dorothy Parker, Virginia Woolf, Maria Judite de Carvalho ou Sylvia Plath, construindo todo um castelo de referências que lhes serviu sempre de modelo, mesmo quando prescindiram de usar as palavras das escritoras na obra final. Essas leituras serviram também para perceberem “até que ponto aquelas mulheres falam de coisas” de que também as três querem falar. Obrigaram-nas a olhar-se ao espelho, a perceber o que as define.

O direito de estar sozinha... e isso não ser um problema

A preparação para As Três Sozinhas acabou por levantar perguntas que ficaram, muitas vezes, sem resposta. Quando se questionaram sobre que parâmetros de avaliação empurram para uma definição de masculino ou feminino, ou por quantas mulheres foram dirigidas nas suas carreiras, ou quantos textos de autoras já interpretaram. Anabela faz as contas e, a menos que a memória lhe falhe, recorda-se de um único texto escrito por uma mulher com que se tenha cruzado profissionalmente em 27 anos de vida de actriz.

Talvez por tudo isso, pelo simbolismo e pela ditadura de comportamentos e de submissão à imagem, às tantas dão por si a livrar-se dos saltos altos. Atiram-nos para longe, para depois os recuperarem mais tarde, num gesto de liberdade e de assunção das suas escolhas. É também a liberdade desses espartilhos que Anabela Almeida reclama quando volta ao seu texto inicial e transforma o sonho de casamento numa situação de festa, rodeada das mesmas pessoas e da mesma felicidade. O figurino da mãe e da esposa com que cresceu foi trocado por esta ideia de mulher sozinha – mas não solitária. “Fiquei muito perdida durante algum tempo e não sabia como havia de recuperar isso na minha vida”, diz. As Três Sozinhas é também um espectáculo que reivindica esse direito de estar sozinha e isso não ser um problema.

A par de As Três Sozinhas, o Festival de Almada arranca com outras duas estreias de produções portuguesas – O Sonho, de Strindberg, numa encenação de Carlos Avilez, no Teatro Mirita Casimiro, Monte Estoril, e Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, com encenação de Rogério de Carvalho, no Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada, ambas de 5 a 18 de Julho.

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