“A diferença em relação aos prisioneiros é que eles têm água e comida. Nós não”
Os nove moradores do Prédio Coutinho saíram à rua ao final da tarde, depois de sete dias rodeados pelas paredes do edifício de 13 andares, sem água, gás e luz, para evitarem o despejo levado a cabo pela VianaPolis, agora suspenso por uma providência cautelar em tribunal.
O ar fresco do Oceano Atlântico, em Viana do Castelo, foi como uma lufada quando as portas do edifício Coutinho se abriram, por volta das 18h05; depois de sete dias fechados para evitarem o despejo, os nove moradores confirmaram, juntos, o direito a entrarem e a saírem em liberdade do prédio, num momento pontuado por abraços, beijos, palmas e lágrimas. “Foi terrível. Tivemos de poupar água e de poupar comida”, lembrou Armando Cunha, residente no Coutinho em 43 dos 77 anos da sua vida. “Fomos solidários. Vivemos com a solidariedade uns dos outros. Foi difícil, mas estamos felizes. Isto vale pelo retomar da normalidade.”
Essa normalidade, nas palavras do morador, regressou após o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga ter aceitado, nesta segunda-feira, a providência cautelar apresentada em 24 de Junho. O advogado dos moradores, Fernando Vellozo Ferreira, confirmou essa decisão do TAF ao início da tarde e exigiu a reposição dos serviços sonegados aos seus clientes. Apesar de ter informado que vai exigir a revogação da providência cautelar, a VianaPolis interrompeu as tentativas de despejo, efectuadas desde as 9h00 da segunda-feira anterior, e repôs a electricidade. O abastecimento de água, porém, ainda não fora retomado até ao fecho desta edição.
“Surrealista” foi a palavra utilizada por Maria José Ponte para descrever a situação que viveu nos últimos sete dias, na companhia da sua cadela, Luna. “Foi um sequestro em minha própria casa. É incompreensível”, reiterou a economista, de 53 anos. Habitante do Coutinho desde 1998 – mudou-se então para a habitação comprada pelos pais – classificou a impossibilidade de entrada de água e alimentos no prédio como “barbáries aos direitos constitucionais e humanos”.
Para contornarem esse obstáculo, acrescentou, os habitantes do Coutinho tiveram de contar com a ajuda uns dos outros e também do exterior. “Sobrevivemos: é a palavra que podemos encontrar”, disse. “Sem a ajuda dos resistentes no exterior, não nos teria sido sido possível resistir a isto com tanta dignidade”. Esta sobrevivência teve, porém, contornos trágicos. Nesta mesma tarde de segunda-feira, um dos moradores, Agostinho Correia, de 88 anos, recebeu a notícia de que a sua esposa, Maria Amália de Castro, falecera no Hospital de Santa Luzia, onde fora internada há 15 dias.
Mercado e Coutinho: uma relação complicada
À porta do 3.º esquerdo, lê-se um breve texto a alegar a Constituição Portuguesa para a defesa do direito à habitação. Aos 75 anos, Ivone Carvalho não se conforma com o projecto de demolição do prédio Coutinho, uma “construção exemplar”, num tempo em que a falta de alojamento é um problema.
A intenção de se construir no lugar do Coutinho o novo mercado municipal torna o objectivo da Câmara ainda mais incompreensível, para a moradora. “O mercado era relativamente bom. Até acredito que precisassem de um mercado mais moderno, mas poderiam ter aproveitado o espaço onde ele estava”, disse, criticando a Declaração de Utilidade Pública emitida a autorizar a demolição do Coutinho, em 2005. O anterior mercado municipal, a dezenas de metros do prédio, foi demolido em 2003.
19 anos de “falta de diálogo”
Para Maria José Ponte, o maior problema deste processo iniciado em 2000 é a falta de diálogo da VianaPolis, bem como a postura de “quero, posso e mando”. “Os gestores da VianaPolis foram muito maus neste processo.” A moradora do 8.º Direito, no bloco Nascente, lamentou a incapacidade da sociedade detida pelo Estado (60%) e pela Câmara de Viana do Castelo (40%) para dialogar sobre as condições da permuta pelas casas entretanto construídas para acolherem os moradores do Coutinho.
A ausência de diálogo é também uma queixa de José Oliveira Santos, residente no 5.º Esquerdo, do bloco Poente. “O presidente da Câmara e a VianaPolis nunca falaram directamente connosco em 19 anos. Só mandaram cartas”, afirmou ao PÚBLICO, em sua casa. Aos 78 anos, o antigo militar e polícia já tinha muitas das suas coisas empilhadas no hall para a eventualidade de ter de sair da casa onde habita desde 1975. O morador reiterou que a escritura do seu prédio, pago com o dinheiro do seu trabalho, foi “legal” e disse ter dificuldades em entender a necessidade de se deitar abaixo um prédio como o Coutinho.
Depois de “noites sem dormir”, com várias tentativas de poupar água de todas as maneiras, José Oliveira Santos criticou ainda o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, que, na sexta-feira, considerou que os poderes públicos é que estão a ser “abusados”. “Revelam um total desconhecimento do processo em si”, disse. “O Estado, enquanto sócio maioritário da VianaPolis, é também responsável por estas atitudes ignóbeis.”
Para Francisco Rocha, emigrante em França durante 45 anos e residente no Coutinho há 12, o processo de despejo nos últimos sete dias foi uma “vergonha”. “Nunca estive preso. Foi a primeira vez. A diferença em relação aos prisioneiros é que eles têm água e comida. Nós não”, disse.