Support Don’t Punish, uma viagem a 2 de Julho de 2001

Dia 26 de Junho assinala-se o Dia Internacional da Luta Contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas e também da campanha Support Don’t Punish. Falta fazer o que ainda não foi feito, como há 20 anos.

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Nuno Ferreira Santos

Dia 26 de Junho assinala-se o Dia Internacional da Luta Contra o Abuso e Tráfico Ilícito de Drogas. Mas é também dia da campanha Support Don’t Punish. Portugal foi este ano o escolhido pela Comissão Global de Políticas sobre Drogas, composta por antigos líderes mundiais, para apresentação do seu relatório anual.

Neste dia partimos em viagem ao dia 2 de Julho de 2001, quando abrimos a porta do que era então a Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência de Lisboa. Com a mudança da legislação portuguesa, hoje reconhecida um pouco por todo o mundo como uma legislação de vanguarda, esta porta abria-se com um misto de responsabilidade, entusiasmo e adrenalina. Tudo era novo, o mundo não tinha nada igual, não havia como estudar, como antecipar. Era Fazer o que ainda não foi feito tal como na letra do Abrunhosa.

Tínhamos como missão dar vida ao papel, transformar o legalês em português de todos/as, em literacia para os consumos. Iríamos ter nas mãos pessoas que passavam do chapéu da Justiça para o da Saúde e para nós, que vínhamos da escola do tratamento, isso fazia tanto sentido que valia tudo: enquadrava o uso de substâncias na Saúde e permitia que as pessoas que usam drogas deixassem de ser vistas como criminosas, interrompendo a escalada judicial instalada nos anos 90 à volta do fenómeno droga. Partíamos de um olhar integrador da globalidade da estratégia. A descriminalização não acontecia per se, era mais uma das peças da engrenagem, mais uma porta no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

As resistências faziam-se sentir, politicamente e no terreno, mas era um passo de gigante para identificar padrões de uso diversificados. Podíamos ir para além da dependência, conhecer quem não chegavam à porta aberta do tratamento. Adivinhava-se que esta informação iria impulsionar, a seu tempo, a necessidade de novas respostas complementares capazes de desmontar o estigma que recaía sobre as pessoas que usam drogas, dotando-as simultaneamente de uma maior autodeterminação sobre este comportamento.

A lei assegurava à Saúde o contacto, para muitos o primeiro, com a saúde. Vinham na condição de indiciados e o desafio era agora como fazer desse primeiro encontro, às vezes único, um encontro onde a saúde fizesse sentido. A chegada era muitas vezes sequência de uma abordagem policial vivida com ansiedade e tensão. Era essencial desconstruir mitos e crenças, alinhar objectivos para profissionais e utilizadores. Priorizámos a escuta e a relação mas hoje percebemos, de forma clara, que os princípios da redução de riscos e minimização de danos nos serviram de azimute.

Pode ler-se na estratégia relativamente à redução:

  1. Pragmatismo: Para comunidade e utilizadores o controlo e diminuição dos danos verificados pode ser uma opção mais pragmática e exequível do que o esforço para eliminar completamente os consumos;
  2. Humanismo: Não é feito um julgamento moral que resulte na condenação ou apoio ao uso/ abuso de drogas e a dignidade e os direitos do consumidor são respeitados;
  3. Ênfase nos danos: A primeira prioridade é diminuir as consequências negativas do uso de drogas para o próprio e para os outros e não a diminuição do uso. Esta abordagem não exclui nem implica o objectivo da abstinência;
  4. Avaliação de custos e benefícios: Considerar interesses imediatos do indivíduo, mas também os da sociedade em geral.
  5. Prioridade para os objectivos imediatos – Atingir os objectivos mais imediatos e realistas.

Às pessoas que usavam drogas, com um padrão de abuso, apresentávamos ou encorajávamos ao tratamento sempre que isso lhes fizesse sentido, mas quando ambivalentes e com fraca motivação para a abstinência, muitas vezes a proposta de sucesso passava pela integração em estruturas de redução de danos. Para as/os utilizadoras/es recreativos, este encontro permitiu, muitas vezes, uma reflexão sobre o uso que faziam e eram conversadas estratégias sobre como o fazer com menos risco.

Apesar das alterações decorrentes do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º8/2008, precisamos de manter vivo o espírito da lei n.º 30/2000 da “descriminalização quer dizer que uma conduta é banida do ilícito criminal”.

Apesar de continuarmos a acreditar no que fazemos, em diferentes lugares da intervenção em Saúde com pessoas que usam drogas, não deixamos de sentir um nó na garganta ao perceber o quão longe toda a engrenagem está do potencial que tinha, e ainda tem. Não deixamos de pensar que fazer bem, como Portugal fez, tinha um “risco” que era o de sermos os melhores do mundo, uma espécie de Ronaldos da política de droga. Mas aqui, no dia-a-dia da intervenção, damos por nós a aguardar uma redefinição política há duas legislaturas.

Olhando o todo, e de diferentes pontos da rede de cuidados às pessoas que usam drogas, sabemos que não nos podemos permitir fechar as portas que fomos abrindo e que asseguram hoje a humanização da estratégia, permitindo a tranquilização politica do fenómeno. Acima de tudo parece-nos urgente uma reflexão profunda que resulte numa prática porque o futuro é agora. Não nos podemos calar com ausência de respostas, com os desafios de uma administração pública que não se renova, mas também com o sentimento de que o SNS não é para novos, mesmo que os novos sejamos nós a meio dos 40. Ainda temos vontade de inovar, de tentar, de contrariar o estigma de uma função pública que não avança e que vive encostada. Acreditamos que é possível trabalhar novas direcções, trilhar novos caminhos nesta área de intervenção e cruzá-la com tantas outras respostas do resto da rede de cuidados.

Não conseguimos dar-nos ao luxo de ignorar a nossa história. Não conseguimos continuar a ouvir em silêncio. Não conseguimos, e não queremos, continuar a viver uma realidade à luz do velho e anacrónico just say no. Vamos lá fazer o que ainda não foi feito, como fizemos há 20 anos. Support Don't Punish.

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