Como o ciclone Idai destapou uma tempestade antiga
Depois das marcas deixadas pelo ciclone Idai, em Março, os responsáveis do Parque Nacional da Gorongosa lançaram um pedido de ajuda e a associação Ajudar Moçambique pôs mão à obra. Uma equipa multidisciplinar deste movimento andou pelas províncias mais afectadas. Foram atendidas mais de 1200 pessoas e fizeram-se levantamentos de casas que precisam de ser reconstruídas e de sementeiras que devem ser repetidas. Dez dias no terreno depois, percebeu-se que a força da natureza não é a única responsável pelo que se passou.
À primeira vista e já com luz de fim do dia, a cidade da Beira parece pouco diferente, mas rapidamente percebo que aqui muita coisa mudou após a passagem do ciclone Idai, em meados de Março.
Sempre houve rapazes no aeroporto a oferecer serviços de bagageiro em troca de uns meticais. A nossa equipa, composta por dez pessoas, maioritariamente médicos, viajava com inúmeros volumes: bagagem pessoal e uma quantidade grande de caixas identificadas com os autocolantes da nossa missão Ajudar Moçambique, contendo medicamentos e material médico.
Os bagageiros aperceberam-se logo da possibilidade de ganhar uns trocos com o nosso grupo e, sem eu poder avisar que não precisaríamos de ajuda, já estavam a empilhar as nossas caixas nos trolleys e a encaminhar a bagagem porta do aeroporto fora em direcção ao carro do Parque Nacional da Gorongosa, que estava à nossa espera.
No fim, quando já estava tudo arrumado dentro da nossa carrinha, agradeci dando uma nota ao líder do grupo de carregadores de malas, dinheiro que deveria ser dividido entre todos por partes iguais.
Pelas inúmeras viagens que já tinha feito à Beira e a outras cidades moçambicanas, sabia que o montante era adequado, mas naquele preciso momento percebi que o ambiente na cidade tinha mudado. Não sei se foi a passagem constante de equipas de ajuda humanitária nas últimas semanas ou se foi a perda de casas e bens que provocou uma subida drástica dos preços. E não só os preços mudaram, como também a atitude. Não gostei, por exemplo, do cerco apertado à minha volta, homens a discutir e a exigir mais; o comportamento habitual de pessoas sorridentes, humildes e calmas deu lugar a uma pequena multidão de caras fechadas, com um ar agressivo. De um momento para o outro, instalou-se um ambiente de poucos amigos.
Felizmente não aconteceu nada, mantive-me calma e firme, avisei que o valor era aquele e fui-me embora dali. Mas ficou para mim o aviso de que as coisas tinham mudado na Beira e que eu estava a viajar com um grupo pouco experiente, pois nem se aperceberam do que se tinha passado, ali mesmo ao lado deles.
Um buraco no tecto
As ruas da Beira estavam como sempre. Já não havia sinais de árvores tombadas a bloquear as vias e na escuridão da noite parecia tudo como dantes. Chegámos quase dois meses após a passagem do ciclone, as situações de maior emergência (electricidade e limpeza das vias da cidade) aparentemente já tinham sido solucionadas. Só o sol do dia seguinte revelou que o nosso hotel em vez do habitual telhado de zinco tinha uma grande lona verde a tapar o buraco que ficou quando a chapa foi levada pelas rajadas de vento que terão chegado aos 195km/h, naquela noite fatídica de 15 de Março.
A primeira paragem oficial do grupo nesta manhã foi o Hospital da Beira, cuja direcção queria receber a nossa missão médica antes de partirmos para o Hospital Rural de Nhamatanda, no distrito de Nhamatanda, a uns 100km da Beira.
Os edifícios antigos do Hospital Central da Beira resistiram bem ao vento e à chuva forte, mas, mais uma vez, foram os telhados de chapa de zinco que foram levados ou dobrados pelo vento forte e não há um único edifício do hospital cujo telhado tenha ficado intacto!
É difícil imaginar tamanha força da natureza, sobretudo agora com o sol a brilhar, mas os relatos das pessoas contam e recontam os medos passados na noite do ciclone.
O pequeno edifício que alberga a farmácia do Hospital da Beira tem a entrada bloqueada com pilhas de caixas de cartão com medicamentos doados, muitas caixas já rasgadas, molhadas, a desfazerem-se, algumas tombadas na lama ao lado da entrada. Há sacos de soro no chão. Faltam mãos para arrumar todos estes medicamentos e nota-se a falta de pessoas com formação em logística para tratar de todas as doações que têm chegado à cidade.
A arrumação impecável da tenda-armazém do Hospital de Campanha da Cruz Vermelha Portuguesa em Macurungu, a tenda de espera que faz sombra para todos, a fila ordenada para a triagem... tudo isto contrasta com a confusão e azáfama do Hospital Central. Na Cruz Vermelha, a situação aparenta calma, atendimentos rotinados.
Não vemos sinais de surtos de cólera ou semelhante em sítio nenhum, embora ao lado do Hospital de Campanha da Cruz Vermelha tenha sido erguida uma cidade de tendas brancas — um hospital isolado com fitas e barreiras, para poder acolher os esperados doentes. Felizmente, o temido surto foi de imediato controlado e terão sido administradas mais de 800 mil vacinas — não sei como, mas a verdade é que não encontrámos sinais de cólera.
Da Cruz Vermelha Portuguesa recebemos uma quantidade significativa de soro fisiológico, uma ajuda preciosa para quem viaja de avião, vindo de Portugal. Cada um tinha o direito de viajar com mais de 40kg, mas, embora tenhamos conseguido um apoio generoso da TAP para o nosso grupo, este peso foi rapidamente ultrapassado com os antibióticos, analgésicos, antimaláricos, testes rápidos de malária, sais de hidratação, pomadas antifúngicas, material para pequenas cirurgias, compressas, Betadine, preservativos, testes VIH, etc., que trazíamos na bagagem.
Também aqui, no Bairro de Macurungu, vemos muitas casas sem telhado, picadas em lama, e em todo o lado sinais do recomeço, da reconstrução em curso.
Horário trocado
Já é quase meio-dia quando deixamos a Beira e seguimos pela EN6 em direcção a vila de Nhamatanda. Perto de Búzi e, mais adiante, perto de Dondo, passámos por dois centros de acolhimento, com centenas de pequenas tendas brancas. Não vimos lá pessoas e só sabemos que, entretanto, estes centros de acolhimento, espalhados pelas províncias de Sofala e Manica, já foram desmobilizados por ordem do Governo moçambicano.
A EN6, que atravessa o corredor da cidade costeira da Beira até à fronteira com o Zimbabwe, está nova, tem um piso impecável. Circulamos numa via de duas faixas de cada lado, com um separador central, só a iluminação e as portagens ainda não estão a funcionar. Há uma quantidade enorme de camiões a transportar cargas pesadas de materiais de construção, troncos de madeira, carvão, combustíveis... O trânsito está denso, uma mistura de carros, motos e velhos camiões e não faltam os transportes públicos: as chapas, pequenas carrinhas de nove lugares a abarrotar com uma vintena de pessoas lá dentro.
De repente, pára o trânsito todo, formam-se filas e apercebemo-nos de que à nossa frente desapareceu metade da estrada por longos troços. A força das águas, dos rios que transbordaram dos seus leitos, levou metade do asfalto e deixou a estrada partida a meio, permitindo apenas a passagem de um carro ou camião de cada vez. Até há poucas semanas, houve partes em que só se podia passar de barco, agora improvisou-se um desvio de uma só faixa, estreita e precária, mas que provavelmente vai ficar assim durante anos até haver fundos suficientes para reparar a estrada.
Chegámos à vila de Nhamatanda. Continua o sol e, embora o relógio indique que são três da tarde, a luz sugere que o dia está a aproximar-se do fim, a típica luz dourada de fim de tarde. Sempre achei que Moçambique vive num horário errado. A proximidade no Sul do país entre Maputo e a África do Sul parece ter tido influência sobre a hora do dia, já que para facilitar os negócios Moçambique adoptou a mesma hora do país vizinho. Mas aqui, no centro do país, já longe da África do Sul, isto não parece assim tão óbvio. São três horas, mas sentimos que são já cinco da tarde.
A Cruz Vermelha Canadiana improvisou um ponto de lavagem de mãos e desinfecção dos pés para evitar a propagação da cólera e criou uma triagem logo à entrada do Hospital Rural de Nhamatanda que se destina à separação imediata de casos com diarreia. Numa placa simples, desenhada a lápis de cor por alguém pouco habituado a escrever em português, lê-se “Diaréa Sim/Diaréa Nao” com setas a apontar em direcções opostas, uma solução simples, mas eficaz.
Passo primeiro pelo posto de desinfecção e fico à espera da passagem do grupo completo quando, de repente, cruzam o meu caminho dois enfermeiros que transportam numa marquesa um pequeno corpo envolto numa capulana colorida. O tecido típico africano, com estampado em tons de azul, deixa perceber um corpo franzino, não se vê nem a cabeça, nem os pés.
Pouco depois, a um metro ou mais de distância segue a mãe da criança morta, sozinha, isolada, com o rosto encharcado de lágrimas.
Não há palavras.
Os dois cirurgiões que integram a nossa missão aproveitam para visitar o bloco — uma doação da Cruz Vermelha Canadiana — equipado com todo o material necessário. Embora tenhamos sentido uma ligeira hesitação por parte da equipa de bloco do hospital rural de Nhamatanda, os nossos dois médicos-cirurgiões ficam confiantes. Têm a certeza de que podem ajudar e embora ainda haja muito material em caixas, encontraram o necessário para efectuar aqui pequenas intervenções cirúrgicas e contam poder tratar neste bloco todos os casos mais graves. Por falta de condições, não vamos poder solucionar estes casos nos atendimentos no terreno que temos previsto iniciar no dia seguinte, na zona-tampão do Parque Nacional da Gorongosa.
Soluções de resiliência
Chegámos já noite escura ao destino, após mais de 24 horas em viagens de avião e de carro, após inúmeras paragens logísticas ou de carácter oficial com o objectivo de apresentar a equipa médica às autoridades locais, antes de iniciar o trabalho humanitário no terreno.
Antes de um merecido descanso, ainda temos de organizar os medicamentos, montar a nossa “farmácia de campo” para ter fácil e rápido acesso a todo o material que trouxemos.
Nestes próximos dez dias ficaremos alojados no Montebelo Safari Lodge, a convite do Parque Nacional da Gorongosa. O Lodge fica no antigo acampamento Chitengo, construído pelos portugueses nos anos 1950. Aqui encontramos tudo o que precisamos: uma sala ampla onde podemos guardar o nosso material em segurança, mas ainda assim aconselham-nos a fechar a porta por causa dos macacos que gostam de roubar tudo.
Tivemos o luxo de ficar em confortáveis quartos individuais, com água quente e luz, e de ter à disposição um restaurante e uma loja, que vende artesanato e o excelente café e mel de produção própria da Gorongosa. Temos wi-fi e até uma piscina! A equipa está cansada, mas feliz.
À volta do Parque Nacional vivem cerca de 180 mil pessoas, que estão espalhadas por seis distritos, dois dos quais foram muito afectados pelos ventos do Idai e pelas cheias provocadas pelas chuvas intensas que o ciclone trouxe para esta zona. Estamos no final da época de chuva, já tinha havido precipitação forte e os leitos dos rios Urema, Pungué e Vunduzi estão cheios. O lago Urema, dentro do parque, mais do que duplicou o tamanho.
As populações vivem na margem dos rios onde encontram água para os seus pequenos campos agrícolas. As comunidades vizinhas do parque vivem sobretudo da agricultura de subsistência, sem água corrente, nem electricidade, acesso demorado a cuidados de saúde, sem escolas e professores suficientes para o grande número de crianças deste país.
O apelo de ajuda do Parque Nacional da Gorongosa chegou à nossa associação Ajudar Moçambique, uma iniciativa recém-criada como resposta às catástrofes naturais que ameaçam Moçambique e a sua população. Com parceiros no terreno, queremos oferecer soluções de resiliência às populações mais afectadas, melhorar o acesso à saúde básica; queremos ensinar uma agricultura com maior produtividade e maior resistência; e queremos ensinar como construir casas que não se desfaçam com chuvas intensas.
Respondemos ao pedido de ajuda, pusemos mãos à obra, mobilizámos fundos e apoios e conseguimos trazer esta equipa multidisciplinar de médicos, enfermeiros e coordenadores do movimento Ajudar Moçambique.
Duas bofetadas
O dia seguinte é mais um dia de sol, que promete calor e talvez a muito esperada descida dos níveis de água que ainda mantém populações isoladas bem perto de nós. Só se chega lá de helicóptero e há mais de dois meses não recebem nenhuma visita das Brigadas Móveis de saúde.
O Parque Nacional da Gorongosa montou uma operação humanitária e distribui diariamente alimentos para as comunidades isoladas. Está prevista a nossa deslocação de helicóptero para lá nos próximos dias, mas hoje vamos ajudar a Brigada Móvel da aldeia de Nhambita, que fica a cerca de 45 minutos de carro.
Chegámos cedo, mas já nos esperam longas filas de mulheres e crianças à sombra de grandes e muito antigas mangueiras. À nossa volta, há muito pó no ar de tantos pés descalços a pisar a terra de modo impaciente.
Nota-se que há pouco hábito de ver brancos nestas aldeias. Há crianças assustadas perante a nossa cor de pele e bebés a chorar de medo. Tentamos respeitar e manter a distância para não aumentar o desconforto, mas para alguns a vontade do registo fotográfico é maior. O aumento do choro, já quase em pânico acaba em risota generalizada das mães quando um bebé se defende da invasiva fotógrafa com duas bofetadas bem dadas.
É difícil contar ao certo quantas pessoas são — registo mais de 200 —, porque há um constante vaivém: mães com bebés envoltos em capulanas a chegar; idosas com bengalas, crianças curiosas a espreitar; quase não vejo homens, só alguns idosos, que se mantêm separados numa sombra mais distante. Como sempre, aparece também um cão magricelas e com mau aspecto, como se procurasse também alguma assistência médica.
Primeiro, temos de montar as bancadas simples de atendimento: arrastam-se mesas velhas e frágeis, mais umas cadeiras de plástico. Tudo tirado do interior do pequeno posto de saúde da aldeia — uma casa térrea de uma sala só, com um alpendre.
Num ramo grosso e forte de uma das árvores pendura-se uma balança com ar agrícola que vai servir para pesar os bebés recém-nascidos na consulta materno-infantil.
A população de Nhambita recebeu um pré-aviso a anunciar a vinda da Brigada Móvel e apareceu em força. Há mais de dois meses que não são feitas consultas de saúde e a população está ávida de receber alguma atenção após os dramas vividos na passagem do ciclone.
Mas primeiro a palestra: um breve discurso de frases curtas e simples em português, traduzidas em simultâneo para o dialecto local. O tema de hoje é o consumo de água imprópria e a falta de uso de latrinas. Ambos são causa de doenças graves nas populações. Consta que a maioria da população de Nhambita vai buscar a água para o consumo de casa ao furo da aldeia, onde também recebe as pastilhas Certeza para a purificação da água. A maioria também usa a latrina construída ao lado da casa. Estas famílias estão bem de saúde. No entanto, ainda há famílias que continuam a ir buscar água ao rio. E que ainda fazem a defecação a céu aberto. Estas famílias estão doentes, com diarreia e outros problemas de saúde.
Mensagens simples e claras
Começamos então as consultas: rapidamente formam-se longas filas à volta das nossas três mesas, cada uma com dois médicos. Numa mesa à parte ficam os dois enfermeiros e a farmácia. Junto à árvore grande começa um choro contínuo, já que nenhum dos bebés gosta de ficar pendurado numas calças com alças na grande balança suspensa — fiquei surpreendida com tanto choro, porque achei que podia ser divertido baloiçar e ver o peso ao mesmo tempo. Nos boletins registam-se peso e vacinas, alimentação suplementar se for o caso, historial de malária e outras doenças infecciosas. Muitas crianças apresentam sinais de subnutrição: peso baixo, barrigas inchadas, corpos franzinos e estatura baixa. A USAID fornece saquetas de alimentação pronta para consumo em forma de papas de alto valor nutricional, para fazer face aos problemas crónicos de subnutrição destas crianças.
As filas avançam quase por cima das nossas mesas e temos que mandar regularmente as pessoas recuar uns metros. O calor e o pó ficam insuportáveis, tal é a massa humana à nossa volta.
Durante longas horas aguarda-se a vez, o atendimento é feito com a ajuda dos intérpretes, o sentido prático dos nossos médicos é testado, a linguagem tem que ser simples e adequada. Não há tomas de medicamentos de oito em oito horas, a posologia é: uma vez depois de mata bichar (mata-bicho é a expressão moçambicana para o pequeno-almoço) e outra vez à noite. Ninguém tem relógio aqui.
Temos muitos casos de crianças e mães com malária, o termómetro anda num corrupio, os testes rápidos são feitos às centenas. Ficámos impressionadas por nenhuma criança ter chorado quando lhe demos uma pica com a agulha para obter uma gota de sangue. No entanto, têm todos medo da balança! Mesmo os de cinco anos — que já são pesados em pé numa balança normal — ficam nervosos de olhos arregalados e ligeiramente assustados.
As filas não param de aumentar, há mais pessoas a chegar, muitos com problemas gástricos, infecções respiratórias e urinárias, mas também ouvimos muitas queixas indiferenciadas de dores de cabeça ou de barriga. E muitas dessas dores só apareceram hoje de manhã, no dia da anunciada vinda da Brigada Móvel!
Há um grande número de mulheres que não são doentes, mas queixam-se de dores de costas e de corpo. São queixas sem palavras que retratam uma vida muito dura, de casamentos prematuros e gravidezes sucessivas, de cuidar de seis ou mais filhos, de trabalho árduo nas machambas (é assim que se chamam as hortas em Moçambique), da escassez de alimentos, da falta de apoio generalizado — há pobreza, ausência de conforto e uma vida que faz lembrar a dos nossos ancestrais, quando estamos em pleno século XXI.
Mais uma vez só chegámos ao Chitengo já de noite, cansados, mas ainda falta organizar novamente o stock de medicamentos para o dia seguinte. Também falta preparar mais fichas de atendimento, nas quais registámos à mão todos os dados importantes de cada consulta — no final estas fichas vão-nos ajudar a fazer um diagnóstico sobre o estado geral de saúde das populações que atendemos ao longo da nossa missão.
Amanhã vamos tentar sair o mais cedo possível, já que a aldeia de Maringué fica mais longe, a estrada está muito má e no caminho ainda vamos parar para examinar um menino albino. Algumas das consultas aqui são combinadas via telefone no cruzamento de duas estradas, à sombra de uma árvore…
O pai trouxe o filho de moto, um rapaz muito magro e tímido, que supostamente já tem 13 anos, mas pela estatura baixa não lhe dava mais do que dez. Já lá estão à nossa espera, junto ao cruzamento entre a picada para a EN1 e o caminho para o CEC, o Centro de Educação das Comunidades do Parque Nacional da Gorongosa.
Também em Moçambique, como em muitos outros países africanos, os albinos são vítimas de perseguição e rapto. Permanecem as crenças ocultas de que o albino terá forças mágicas nos seus órgãos, ossos ou cabelo. O resultado é muitas vezes uma vida em esconderijos, abandono escolar e a marginalização. O rapaz à nossa frente apresenta lesões cutâneas graves devido a exposição solar contínua, além de um tumor exterior enorme por cima da orelha direita, sinal de cancro de pele já num estado avançado. Também sofre de problemas de visão e precisa de óculos escuros para proteger os olhos demasiado claros, muito sensíveis à luz solar. Não foi visto durante mais de três meses e o seu estado de saúde agravou-se de tal maneira que já só há cuidados paliativos para ele.
Na aldeia de Maringué assistimos a mais uma palestra, desta vez sobre controlo de natalidade. Aqui esperam-nos mais de 300 pessoas em filas coloridas, que misturam os tons garridos das capulanas, saias e blusas, que, por sua vez, contrastam com a tez de pele escura da população.
Toda a semana se passa assim: longas viagens em picadas de terra batida, demoramos uma hora para fazer seis quilómetros! Regressamos já de noite, sempre numa corrida contra o relógio: depois das seis da tarde já ninguém entra no Parque Nacional da Gorongosa. Guiar nas picadas do parque na escuridão é demasiado perigoso, sobretudo se nos surgir pela frente um elefante — pode ser fatal. Mas mesmo nas estradas de alcatrão é perigoso conduzir à noite.
Ensinar a pescar
Finalmente, chegou o fim-de-semana com dois dias de descanso. Vamos aproveitar para dormir de manhã e fazer um safari a tarde. E no domingo mais outro, mas desta vez de barco no lago Urema. Estes dois safaris elevam novamente o espírito do grupo e ajudam a recarregar as energias para mais uma semana de atendimentos médicos contínuos no terreno.
Nos próximos dois dias visitámos as populações isoladas de Nhangera e Mabungua, só acessíveis por helicóptero. Aqui nem cadeiras nem mesas encontrámos, e a sombra também é escassa. Enfim, as condições de trabalho são duras, mas vimos cá para ajudar e não há dúvida que as condições de vida são incomparavelmente mais duras.
Nestas localidades nota-se um desespero maior. Para além das já habituais doenças respiratórias e fúngicas e da malária, encontramos um número elevado de infecções com parasitas provocados pelo contacto com águas contaminadas.
As aldeias de Nhangera e Mabungua ficam junto ao rio Pungué, num terreno com muito pouca elevação, que forma uma espécie de bacia. Com as chuvas intensas uma parcela enorme ficou inundada e cortou os acessos a essas comunidades. O nível de água tem baixado muito lentamente ao longo das últimas semanas e na pior fase das cheias ficou cerca de sete metros acima do nível normal, mas espera-se que em breve a comunidade possa regressar à normalidade.
Esta semana queremos também começar com a avaliação das casas e machambas destruídas pelo ciclone.
Os ventos fortes partiram boa parte das canas de milho já quase maduras, enquanto a subida do nível de água deixou muitos outros campos agrícolas submersos até ao apodrecimento das colheitas. Já se iniciou a distribuição de sementes para plantar uma segunda vez, mas a população prepara-se para passar fome até obter novas colheitas, em Março de 2020. As terras do centro do país são férteis, o solo pode dar boas colheitas, mas há falta de sistemas de rega, e o excesso de monocultura, embora em escala pequena, também pode acabar por extrair nutrientes essenciais do solo.
Criámos uma parceria com a Escola do Agricultor, uma associação de responsabilidade social que fornece formação agrícola aos pequenos produtores. Criaram uma multiplataforma para gerar conhecimento da qual fazem parte programas de televisão e de rádio, formações, feiras, boletins informativos e informação em redes sociais actualizadas. A Escola do Agricultor pretende contribuir para tornar a agricultura de subsistência economicamente viável, aumentar a produção e a criação de excedentes, aumentar os rendimentos familiares e assim ajudar a combater a desnutrição.
Vamos de carro até ao Chimoio, a maior cidade da província vizinha, Manica, que fica a cerca de 140km do Chitengo. Esta zona mais elevada do país foi igualmente atingida pelo ciclone e pelas chuvas intensas, mas não houve tantas inundações.
Uma aldeia típica das zonas rurais do centro de Moçambique é composta por casas dispersas, uma família pode ter várias casas, conforme idade e quantidade dos filhos que aqui vivem. Para imaginar estas aldeias temos de esquecer o nosso conceito de casa. Aqui uma casa é uma construção de uma divisória pequena, com cerca de 6m2, o chão é em terra batida, as paredes feitas de lama seca misturada com madeira ou em tijolo-burro, feito de terra e seco ao sol. O telhado é de palha ou de chapa de zinco. O interior das casas é escuro, não há janelas, mas às vezes existem aberturas pequenas que deixam entrar alguns raios de luz. Não existe mobília no interior, dorme-se em esteiras de palha estendidas no chão, os poucos pertences, roupa e semelhante são pendurados nas paredes.
Depois há o pátio com a cozinha ao ar livre, composta por uma fogueira e às vezes uma bancada simples em madeira. Ainda existe outra construção em estacas, uma espécie de espigueiro redondo para guardar o milho e as sementes, longe de cobras ou animais roedores.
E em muitas aldeias já se vêem as latrinas ao lado das casas, com paredes de palha para tapar a vista.
A chuva forte que caiu na noite do ciclone e nos dias seguintes dissolveu muitas das paredes destas casas simples, transformando-as em lama e provocando a derrocada de partes ou de casas inteiras. As rajadas violentas de vento levaram telhados e destruíram latrinas e cozinhas.
A maior parte destas construções simples já está a ser erguida de novo, a reconstrução das casas demora mais tempo. Muitos telhados são cobertos por lonas de plástico preto grosso.
Apresentam-nos o desenho de uma casa de aldeia melhorada. Com o chão feito em cimento, pilares em alvenaria, que garantem uma maior resistência, esta casa terá janelas e portas cobertas com rede mosquiteira metálica. O telhado de chapa de zinco será assente em barrotes de pinho e ancorado a uma viga de coroamento. Ao lado da casa serão construídos uma latrina e um balneário. As paredes seriam feitas de tijolo-burro queimado no forno. A construção de cada casa será um esforço conjunto, parte feito pelo empreiteiro, outra parte pelo proprietário.
Gostámos muito deste projecto de casas melhoradas, assim como a abordagem da Escola do Agricultor. São ideias construídas por pessoas profundamente conhecedoras da realidade rural em Moçambique. As melhorias propostas serão feitas em conjunto e em completo acordo com as comunidades. As estruturas oficias existentes precisam de algum apoio financeiro, mas não dependem na totalidade de donativos e assim responsabilizam cada um, aplicando o velho ditado que diz que é melhor ensinar a pescar do que oferecer o peixe.
Corrupção em todo lado
Enquanto estamos no Chimoio, os dois cirurgiões do grupo regressam ao Hospital Rural de Nhamatanda, porque ficaram várias cirurgias agendadas. A logística de recolha de pessoas das aldeias distantes é complexa. Rapidamente percebemos que aqui mais vale não precisar de uma urgência, as distâncias são grandes, as estradas são más, não existem ambulâncias, só transportes de doentes. Nas aldeias dizem que têm medo dos hospitais, porque lá se morre muito. Na realidade, as mortes acontecem porque tantas vezes não se consegue chegar ao hospital a tempo.
Enquanto visitamos aldeias e machambas em Chipaca e Matsinho, perto do Chimoio, pensamos várias vezes nos cirurgiões e perguntamo-nos como estará a correr o dia deles. Qual é o nosso espanto quando nos contam à noite que não realizaram nem uma única cirurgia! Não foi por falta de material, nem por falta de assistência do técnico anestesista, nem por falta de electricidade, simplesmente não os deixaram operar.
Demorámos alguns dias a investigar o que se terá passado. Aparentemente, não houve nenhuma ordem superior a proibir a intervenção dos nossos colegas. E tudo aponta para que o material ainda embalado no bloco oferecido pela Cruz Vermelha Canadiana não era para ser utilizado pelos nossos cirurgiões, pois já tinha um destino prometido. A corrupção pode ser encontrada em todo o lado em Moçambique.
Em dez dias no terreno atendemos mais de 1200 pessoas e vimos centenas de casas e machambas desfeitas. Ainda não temos a análise detalhada de todas as patologias que encontrámos, nem de todas as necessidades de construção e sementeira.
No entanto, já podemos assegurar que cerca de 10% dos doentes atendidos sofrem de malária, muitos deles crianças com menos de cinco anos. Entre 10% e 15% têm doenças respiratórias, que vão de infecções leves até tuberculoses crónicas. Há também uma elevada percentagem de doenças fúngicas como tínea, devido a falta de higiene básica e contacto com animais infectados. E há um número grande de patologias associadas à dureza da vida no campo e a falta de uma alimentação nutritiva e equilibrada.
Percebemos que os estragos na agricultura foram quase totais e que surgirá uma enorme necessidade de ajuda alimentar, pelo menos até que cresça a colheita do próximo ano. O Parque Nacional da Gorongosa já distribuiu mais de 150 toneladas de alimentos e continuará a sua distribuição.
As populações já estão a reconstruir as suas casas, mas sem melhorias significativas estas só vão durar até à próxima catástrofe natural. As alterações climáticas indicam uma alta probabilidade que fenómenos naturais como ciclones fortes se repitam, assim como chuvas fortes e inundações associadas.
Uma coisa ficou bastante clara para nós: muito do mal-estar das populações não é resultado directo do ciclone Idai, mas da falta de investimento na melhoria das infra-estruturas, da falta de investimento nos cuidados básicos de saúde, da falta de investimento na educação básica, etc. A passagem do ciclone pela cidade da Beira e pelas províncias de Sofala e Manica agravou ainda mais o mau estado e o sofrimento da população.
A triste realidade é que a falta de investimento é um resultado directo dos cortes drásticos da ajuda humanitária e do congelamento dos empréstimos do FMI que Moçambique sofreu após a descoberta do caso da dívida oculta. Não foi quem governou e meteu no bolso quem foi castigado — foi o povo moçambicano.