Do quintal da avó de Ivo nasceu uma paixão, um jardim e um livro

Foi com a avó que colheu as primeiras flores e desenhou o primeiro jardim. Tornou-se professor de Biologia, botânico amador, guia. Agora, Ivo Meco lançou um livro sobre os Jardins de Lisboa. Porque contar histórias e criar jardins pode ser uma forma de perpetuar a memória.

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Nuno Ferreira Santos

Não se pense que era um jardim enorme, uma “coisa pomposa”. Eram canteiros com vasos no quintal de casa, colada àquela onde Ivo Meco vivia com os pais, em Sines. Mas são essas as recordações que afloram sempre que pensa na avó: de vê-la regar as plantas ao final do dia, a apanhar as folhas secas, a colher flores para depositar sobre a campa do avô, a passar tardes inteiras à janela a olhar o campo.

A olhar aquela araucária “enorme”, agora “tapada por construções”, que ainda hoje intriga Ivo Meco, 38 anos. “Quando comecei a escrever o livro, tentei saber a história daquela árvore, há quanto tempo tinha sido plantada. Porque existem fotografias aéreas a preto e branco e ela já lá está, gigante.” O primeiro exemplar da espécie plantado em Portugal Continental, em 1841, ergue-se no Parque Botânico do Monteiro-Mor, no Lumiar, e é uma das recomendações do livro Jardins de Lisboa, lançado por Ivo a 17 de Maio, véspera do Dia Internacional do Fascínio das Plantas e dia do aniversário da avó. “Foi a homenagem pessoal que lhe pude fazer”, diz. “Tenho a certeza que ficaria muito orgulhosa.”

No livro, editado pela Arte Plural, entrelaçam-se seis jardins da capital portuguesa – Monteiro-Mor e a sua araucária, os jardins botânicos Tropical, da Ajuda e de Lisboa, o jardim da Estrela e a Estufa Fria. Escolhidos pela importância histórica dos espaços e das colecções botânicas, pela forma como se interligam com a história da cidade e do país e uns com os outros, através da transferência de plantas e de botânicos. Mas também pela forma como alguns se colam às memórias do autor.

É o caso da Estufa Fria, onde nos encontramos. “Quando era miúdo, vinha algumas vezes [a Lisboa] por razões de saúde. A prenda que eu recebia era poder vir aqui passear com a minha mãe enquanto não vinha o autocarro.” Ivo lembra-se de andar aqui pelo meio, na zona dos riachos, “à procura de rãs”. Volta e meia, escorregava e molhava os pés. Tornou-se um hábito, uma tradição das visitas a Lisboa. Naquela altura, confessa, o que lhe interessava eram os bichos. “Tinha n aquários em casa com n coisas lá dentro e frasquinhos com animais.” O sonho de tornar-se veterinário quedou-se apenas quando percebeu que “ia sofrer muito” quando “morresse o primeiro animal”.

O gosto pelas plantas já lá cirandava, pelo quintal da avó. Ivo entretinha-se com ela, a regar e a apanhar flores. “É daqueles ensinamentos informais mas que ficam e que são muito importantes.” Quando quis fazer o seu próprio jardim, foi a ela que pediu ajuda. “Arranjava pedacinhos [de plantas] e dava-me. Ensinava-me como é que se plantava e o que tinha de fazer.” Em Lisboa, e agora na margem sul, para onde acabou de se mudar, começou a criar a “colecção da avó”. “Falta-me só encontrar uma para restabelecer todas as que ela tinha em casa.” As begónias, os brincos-de-princesa, os “milhos” (chlorophytum), os gladíolos ou a amaryllis belladona, que “no final do Verão dá umas flores cor-de-rosa, que cheiram súper bem, e que ela apanhava para levar para o cemitério”.

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Inicialmente, conta, o livro era para ser um guia de jardins, mas à medida que foi escrevendo – “Nunca tinha escrito um livro” – a obra foi “tomando outros contornos”. Chama ao título “histórias de espaços, plantas e pessoas”, porque é guia, é memória, é manual de botânica. Tem dentro recordações da avó, dos pais ou da bióloga Alexandra Escudeiro – “Uma pessoa muito importante para a minha formação enquanto botânico amador” –, com quem trabalhou no Jardim Botânico de Lisboa, onde fez um curso de guia e foi voluntário no herbário. “Foi um privilégio poder mexer em plantas que estão secas há cem anos, que são lindas e que têm um cheiro característico, difícil de explicar. É uma coisa muito física.”

Para Ivo, é “impossível não ficar fascinado com a Natureza”. Ainda para mais quando ela cria coisas como o fruto da uncarina stellullifera (na foto), uma planta de Madagáscar que acabou por encontrar num jardim botânico em Tenerife e que tem uma forma estrelar e uns ganchos nas pontas para se prender nos pêlos dos animais. Faz parte do “gabinete de curiosidades de objectos naturais” que tem em casa, a maioria frutos e sementes. Ou quando se regressa ao Jardim Botânico da Ajuda e se repara, pela primeira vez, que ali existe uma vigna caracalla, a trepadeira-caracoleira, que vira apenas em livros. “As flores são em espiral, então parecem caracóis. Depois são brancas, quando se abrem têm a parte de dentro das pétalas cor-de-rosa e vão começando a ficar amarelas. O cheiro é uma coisa maravilhosa.” Parece-lhe “brilhante” poder voltar a um jardim, e voltar, e voltar, e “não se esgotar”. “Existe sempre mais qualquer coisa.”

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É este fascínio pela Natureza que Ivo tenta transmitir enquanto professor de Biologia e Geologia do ensino secundário (estudou Ensino de Ciências da Natureza) ou nas visitas guiadas que faz, de vez em quando, nos jardins lisboetas (foi através delas que acabou por ser convidado para participar no programa Paraíso, que está a passar novamente na RTP2). E é esse o convite que quer fazer a quem ler o livro. É um “desafio”, uma “alavanca”, para que “as pessoas saiam de casa e venham ver o que existe à nossa volta e descobrir um bocadinho da história de Lisboa e de Portugal através da Botânica”. Até porque acredita existir gente cada vez “mais interessada pelos jardins” e “mais virada para o verde”.

Um livro, um jardim, também podem ser guardadores de memórias. De outros tempos e regimes. De reis, guerras e ciclones. De terras distantes e antigas colónias. Da infância e da avó. De um amigo apaixonado por plantas. “Preocupa-me um bocadinho a memória e a finitude das coisas. A minha avó e quase todos os meus tios-avós tiveram Alzheimer, portanto sei que isso é uma coisa que me pode bater à porta daqui a uns anos. A melhor solução é, enquanto estamos lúcidos, tentar arranjar formas de estabelecermos âncoras à realidade.” É por isso que está a recriar o jardim da avó e é por isso que gosta de contar histórias, no livro, nas visitas guiadas, na sala de aula, aos amigos. “É uma forma de nos propagarmos e de continuarmos vivos de alguma forma”, defende. “Se se lembrarem de mim sempre que estão num jardim, ou junto a uma árvore, chega, é perfeito. Sou eterno.”

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Resposta rápida

É professor do ensino secundário. Que relação têm os alunos com estes espaços?

A relação com as plantas é uma coisa que eu tento passar-lhes. Faço questão que aprendam coisas, mesmo não estando no programa. Acho fundamental porque é uma das coisas para as quais nos podemos voltar no futuro, na área das tecnologias, da alimentação. Com as mudanças que estamos a assistir no mundo, se elas desaparecerem vamos estar em maus lençóis. É [preciso] começar a ver a botânica como uma aliada e tê-la do nosso lado nas lutas futuras, que vão ser grandes.

Se pudesse escolher um jardim no mundo, qual seria?

Há um jardim onde quero muito muito ir: os Kew Gardens [no Reino Unido]. Conheço de reportagens e de documentários e tem uma hipercolecção lindíssima. Espero que seja para breve.

Há planos para novos livros?

Já me espicaçaram. Ainda estou um bocadinho na bebedeira deste, de perceber o que vai acontecer, se vai ser bem aceite, se o estilo de escrita é interessante para as pessoas. É toda uma incógnita. Mas claro que sim. Porque não?

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