Passevite, espectáculo “escortanhado” a partir de duas peças que não o foram

A partir de dois espectáculos que não chegaram a acontecer, a companhia portuguesa criou Passevite, uma criação de tensão entre o desejo e a concretização. Está na Appleton Square, em Lisboa, desta quinta-feira e até domingo, 23 de Junho.

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"Passevite" alinha com as preocupações ecológicas actuais e o espectáculo anterior é aproveitado e não deitado para o lixo cORTESIA PLATAFORMA 285/bjsbjs
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Passevite é um espectáculo que nasce de dois outros espectáculos que não chegaram a existir. Nos últimos dois anos, a Plataforma 285, companhia de Raimundo Cosme e Cecília Henriques, realizou duas residências artísticas, escreveu, teorizou, ensaiou, encomendou cenografia e música para duas peças, Happy Ending e Glorious Holy Bath, que caíram juntamente com a saída de cena de co-produções ou apoios que seriam fundamentais para a sua concretização. Quando, finalmente, encontraram na Appleton Square, em Lisboa, um espaço onde podiam apresentar Glorious Holy Bath, tinha-se passado tempo suficiente para que aquela criação tivesse perdido gás e deixado de fazer sentido.

“Isto acontece muitas vezes e com todas as companhias”, contextualiza Raimundo Cosme, actor e encenador, em conversa com o PÚBLICO dias antes da estreia de Passevite, nesta quinta-feira. Devido ao intervalo entre o planeamento dos espectáculos e a sua concretização é normal que, com tanto a mudar no mundo e nas vidas dos criadores, seja necessário redescobrir os projectos e as suas motivações, descortinar novos pontos de interesse. Têm, na verdade, de se enamorar novamente por amores esfriados. Ora o que se passou foi que na ausência de um compromisso institucional assumido com quaisquer entidades para a apresentação de Glorious Holy Bath, surgida a oportunidade de o levar à cena, Raimundo convocou o resto da equipa – Cecília Henriques, o músico Rodrigo Vaiapraia e o cenógrafo Bruno José Silva – e informou-os da sua decisão de não avançar com aquela peça, mas com uma outra construída sobre os escombros daquele espectáculo que não chegou a passar do papel. “Quando isto ficou claro na minha cabeça”, diz, “percebi o que queria fazer: um espectáculo por cima de outro, por cima de um espectáculo morto que nunca chegou a ver a luz do dia.”

Em vez de lançar o pânico entre os seus companheiros criativos, Raimundo Cosme percebeu que o entusiasmo com o projecto inicial esmorecera em todos eles. O timing tinha passado, apresentarem aquela ideia já seria quase um acto de traição e, nesse novo consenso, perceberam que poderiam antes dançar sobre o túmulo de Glorious Holy Bath. Daí que no piso subterrâneo da Appleton Square, no bairro de Alvalade, encontremos uma zona de apresentação preenchida por uma piscina e por uma cadeira de longas pernas (estilo nadador-salvador), restos da cenografia desse espectáculo inexistente, com os quais os actores não criarão qualquer relação em cena. No mesmo sentido, a voz off de Patrícia Silva lerá o texto da criação abortada e Sara Garrinhas trabalhou um desenho de luzes a partir desse guião abandonado.

O que é então Passevite? É essa tensão permanente entre o momento em que se idealiza uma obra de arte e o momento ulterior em que ganha finalmente vida, entre aquilo que se imagina e aquilo que se consegue fazer, de uma forma que, alinhada com as preocupações ecológicas actuais, procura não gerar desperdício – o espectáculo anterior é aproveitado e não deitado para o lixo, mas apenas para criar uma fricção com a proposta presente. “Como é que se pensa um espectáculo a ser construído dentro de um espaço a que não pertence?”, questiona Raimundo Cosme. “Era sobre isto que queria falar: esta ideia de não pertença, de não encaixar. Em vez de nos desligarmos do problema, quisemos problematizar a questão.”

Estes diferentes tempos saem ainda adensados por uma questão que é invisível para o espectador, mas que está na cabeça da Plataforma 285: ao mesmo tempo que preparam Passevite, pensam e discutem uma co-produção prevista para 2020 e planeiam a actividade da companhia para 2021. Condição que sabem não ser exclusiva dos artistas, mas de “todas as pessoas que trabalham a recibos verdes”. A precariedade, já se sabe, obriga a jogar em vários tabuleiros em simultâneo e não se concentrar por inteiro naquilo que é mais premente.

Grito de uma geração

Passevite – título que remete para um espectáculo em que “está tudo escortanhado, e em que dos espectáculos anteriores sobrou apenas a memória e a cenografia” – é assumidamente uma criação de risco e que carrega o tempo todo o questionamento do próprio processo artístico. E que é apresentada como “grito de uma geração”, naquilo que representa de luta pela sobrevivência de uma companhia de teatro. Só que esse gesto não demora a ver-se como algo mais abrangente. “A companhia de teatro é a forma como sobrevivemos e vivemos no mundo”, admite Raimundo Cosme, “mas em todas as formas de sobrevivência, e só falando no primeiro mundo – em que podemos escolher o que fazemos –, a existência vai ser condicionada num futuro próximo pelas decisões que tomarmos.”

A existência no interior da Appleton Square, tal como a existência no planeta. Pequenas e grandes decisões, enquadradas sempre pela ética e pela moralidade. Com uma piscina em palco, enchê-la de água deixa de ser uma mera opção artística. Passa a ter uma dimensão e uma simbologia muito maior. A sobrevivência de uma companhia não se desliga da sobrevivência do planeta. Afinal, Passevite está sempre a lembrar-nos de causas, de consequências e de dependências.

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