A ciência enquanto bem público
O ensino superior e a ciência têm de estar no cerne da agenda política para o país.
O ensino superior e ciência em Portugal tem sido palco de um crescimento continuado ao longo das últimas décadas. Este crescimento traduziu-se, por exemplo, num importante aumento dos recursos humanos ativos, com destaque para o crescente número de doutoramentos, no aumento muito notável da produção científica, traduzida em artigos publicados, e também na capacidade de captação de financiamento internacional.
Contudo, este crescimento ocorreu num quadro de subfinanciamento crónico das instituições e de crescente precarização laboral. Entretanto, os indícios de afunilamento das áreas de investigação; de transferência parcial das responsabilidades de investimento em ensino superior e ciência para o setor privado; de insuficiências na democratização das instituições académicas e científicas; e de eternização de situações de precariedade deve ser objeto de reflexão e intervenção. Os/as docentes, investigadores/as e as organizações aqui reunidas não renunciam a participar no debate e numa intervenção responsável nos processos e decisões sobre política científica e sobre os seus impactos nas pessoas, instituições e no sistema científico como um todo.
Em primeiro lugar, cumpre afirmar que uma orientação das práticas científicas para a “excelência” (termo invocado pela tutela) e para a “aplicação do conhecimento” não pode significar uma concentração de recursos que leve, a prazo, ao desaparecimento do trabalho desenvolvido por vastas áreas do conhecimento, um processo particularmente notório nas ciências sociais e humanas, mas transversal a todas as áreas do conhecimento, e à inexistência de retorno de uma parte substancial do investimento público realizado ao longo das últimas décadas em Portugal. Reconhecendo-se a importância de práticas científicas conducentes à aplicação do conhecimento na resolução, a mais curto prazo, de problemas concretos, reconhece-se também que esta importância não poderá aniquilar a produção, a mais longo prazo, de conhecimento fundamental, que constitui o cerne de um subsequente desenvolvimento de investigação aplicada.
Reconhecendo-se as vantagens de um crescimento da relação entre as instituições científicas e empresas, nomeadamente no que diz respeito à translação de conhecimento em inovação, reconhece-se também que uma redução da política científica nacional a tal desiderato, esquecendo tanto a investigação fundamental, em todas as áreas do conhecimento, como o compromisso social, corrói, a prazo, a construção científica e de um pensamento crítico, assim como a sustentabilidade e coesão social e ambiental.
É, por isso, central que a política de ciência em Portugal se afaste de visões redutoras do que é a ciência e garanta uma ciência com futuro através de um financiamento de projetos de investigação e das instituições executoras dessas atividades distribuído de acordo com uma estratégia global de longo prazo, não decorrente de potenciais impactos imediatos e envolvendo todas as áreas do conhecimento. Igualmente importante, é uma representação de todas as áreas científicas nos lugares de decisão da principal agência de avaliação e financiamento em Portugal, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Finalmente, urge a aplicação de medidas de igualdade de género nos lugares de decisão, bem como o alargamento da representação das diversas partes interessadas, incluindo organizações sindicais e associações científicas.
Em segundo lugar, sublinha-se que a política científica requer estabilidade e previsibilidade dos mecanismos de financiamento para além dos ciclos políticos e o estabelecimento e aplicação de critérios e procedimentos de avaliação justos, desburocratizados e transparentes. Sublinha-se que taxas de sucesso em concursos públicos altamente competitivos a rondar os 10% por limitações orçamentais são impeditivas do cumprimento do anteriormente exposto. É, assim, urgente um crescimento do investimento público em pessoas, projetos e instituições, um crescimento que permita ultrapassar as condições de subfinanciamento crónico deste sector, que permita articular os diferentes tipos de investimento, promovendo a concretização de estratégias de médio e longo prazo. Esta concretização necessita, pois, de um reforço orçamental.
Reitera-se, ainda, que só existe política científica com pessoal científico integrado em carreiras estáveis, alicerçadas em princípios que assegurem a promoção da qualidade e a melhoria contínua das instituições. Assim, é urgente ultrapassar o atual modelo de eterna precarização do trabalho científico, dignificando a carreira docente e de investigação e integrando cientistas no sistema de ensino superior, com um corpo docente muito envelhecido, e no sistema científico, que permanece amputado de pessoas integradas nestas carreiras.
O recente reforço do emprego científico para doutores/as, apontando para a alteração de um modelo baseado em sucessivos contratos de bolsa, por outro assente em contratos de trabalho a prazo, sendo meritório, é amplamente insuficiente. Este modelo eterniza a corrida de investigadores/as doutorados/as a concursos para contratos de trabalho sempre a prazo e condena todos/as os/as não doutores/as à inadequada posição de investigadores/as ou técnicos/as com bolsa, em clara desqualificação e desrespeito pelas funções desempenhadas.
Paradoxalmente, os produtos do trabalho destes/as investigadores/as e técnicos/as com bolsa permanecem contabilizados nos índices de produtividade das suas instituições. Urgente é, assim, democratizar as instituições garantindo a participação de todos/as, uma participação amputada pelo RJIES e pela impossibilidade de representação dos investigadores/as com bolsa nos órgãos de gestão das suas instituições.
Urgente é, também, delinear as carreiras científicas tendo em conta as especificidades das funções desempenhadas e promover a sua aplicação concreta. Esta aplicação poderá concretizar-se, por exemplo, através da atribuição de financiamento público estrutural (via Orçamento do Estado) para a contratação de trabalhadores/as científicos/as não docentes pelas instituições onde exercem funções, um processo cujo cumprimento poderia ser aferido superiormente e associado a sanções positivas e negativas. Uma outra solução seria a possível implementação de um modelo de contratação e gestão das carreiras científicas centralizado por um organismo estatal. Reconhece-se aqui que a estabilidade laboral é uma condição indispensável a um compromisso sério com a ciência, um compromisso que possibilite a consolidação de uma sociedade menos desigual e um atenuar das permanentes assimetrias internas e entre Portugal e a Europa do Centro e Norte.
Num mundo marcado por rápidas transformações e ameaçado por inúmeras desigualdades sociais e ambientais, o papel do conhecimento e o papel de um pensamento crítico são centrais. É, assim, imperioso o crescimento do investimento público em ciência e o cumprimento do investimento de 3% do PIB Português em I&D, em 2030. Igualmente inadiável é a concretização de uma aposta estratégica em instituições de ciência e ensino superior onde uma faixa considerável da população portuguesa passa importantes anos das suas vidas.
Essencial é não só a participação ativa na vida e gestão das instituições do pessoal científico qualificado que nelas trabalha, mas também que as instituições científicas e de ensino superior não sejam meros recetáculos e agentes passivos de diretivas externas e que contribuam – em estreita auscultação dos seus investigadores e docentes – para a definição de novas agendas de investigação, conhecimento e epistemológicas. O ensino superior e a ciência têm de estar no cerne da agenda política para o país. Muito para além de se afirmar e voltar a afirmar a ciência enquanto bem público, urge capacitá-la enquanto tal.
Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC)
Associação Nacional de Investigadores em Ciência e Tecnologia (ANICT)
Associação Portuguesa de Antropologia (APA)
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM)
Associação Portuguesa de Demografia (APD)
Associação Portuguesa de Economia Política (APEP)
Associação Portuguesa de Linguística (APL)
Associação Portuguesa de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho (APSIOT) Associação Portuguesa de Psicologia (APP)
Associação Portuguesa de Sociologia (APS)
Ordem dos Biólogos (Obio)
Ordem dos Economistas (OE)
Organização dos Trabalhadores Científicos (OTC) Sindicado Nacional do Ensino Superior (SNESup) Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL) Sociedade Portuguesa de Neurociências (SPN)
Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) Sociedade Portuguesa de Investigação em Música (SPIM) Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM)
Sociedade Portuguesa de Química (SPQ)