Construir comunidade
O nosso país foi pioneiro no lançamento do Orçamento Participativo a nível nacional com duas edições já realizadas, complementadas com o OP Jovem e OP Escolas também
Assistimos a um paradoxo nacional no que toca ao comportamento dos cidadãos face à democracia. Se é verdade que a elevada taxa de abstenção verificada nos últimos atos eleitorais, resultado de um progressivo afastamento e desconfiança face às estruturas e formas de poder instituídas, pode revelar uma crise da democracia representativa, há hoje um conjunto relevante de práticas de democracia participativa que sugerem um interesse acrescido dos cidadãos por causas coletivas. Nesse sentido, parafraseando Mark Twain, poder-se-á dizer que a notícia da morte da democracia em Portugal é manifestamente exagerada.
Portugal tem, no presente momento, cerca de 100 experiências ativas de Orçamento Participativo (OP), de acordo com a informação do projeto Portugal Participa, um número relevante ainda que, na sua grande maioria, de curta longevidade (duração inferior a quatro anos). Ainda neste âmbito, o nosso país foi pioneiro no lançamento do OP a nível nacional com duas edições já realizadas, complementadas com o OP Jovem e OP Escolas também a nível nacional. Para além destas iniciativas, vários municípios desenvolvem processos participativos inovadores e com forte envolvimento cidadão seja em projetos de regeneração urbana (e.g. BIP ZIP em Lisboa), em planos de ordenamento do território (e.g. PDM da Maia) ou em planos ambientais (e.g. Plano de Gestão do Parque das Serras do Porto). Paralelamente, há hoje uma dinâmica de intervenção relevante promovida por movimentos de cidadania para debater projetos públicos (Martim Moniz em Lisboa, Jardim do Rossio em Aveiro, Fábrica Confiança em Braga), para dialogar sobre a “cidade querida” (e.g. Plataforma Cidades em Aveiro) ou para refletir sobre temas setoriais (a mobilidade sustentável, em particular).
A insatisfação com a forma como a democracia está a ser desenvolvida, tem dado origem a projetos de inovação cidadã por toda a Europa com o objetivo de promover formas mais robustas e consequentes de cidadania. É o caso dos laboratorios ciudadanos promovidos pelo MediaLab Prado em Madrid e, mais recentemente, do Lab Cívico de Santiago em Aveiro.
Inspirado na experiência do Programa Experimenta Distrito realizada nos bairros de Madrid, a equipa promotora do laboratório cívico em Aveiro, constituída por pessoas com ligações à universidade, ao tecido associativo e empresarial, identificou como espaço de intervenção o bairro de Santiago, localizado no centro da cidade, paredes meias com a Universidade de Aveiro. O projeto procurou responder a três desafios: criar espaços informais de escuta de necessidades e anseios coletivos num bairro da cidade, promover um local de encontro de saberes e competências diversos e estimular a experimentação em torno de projetos com significado na vida das comunidades. Ao contrário da experiência espanhola, a iniciativa foi feita em regime de voluntariado e sem apoios financeiros institucionais.
Envolvendo mais de sessenta cidadãos, foram idealizados, planeados e concretizados ao longo dos últimos três meses dez projetos cívicos, em modo experimental e de forma colaborativa, abordando temas tão diversos como o sentido de vizinhança, a identidade local e o fotojornalismo, as novas tecnologias e o encontro de gerações, a poluição e a arte, os saberes, sabores e o futebol. Durante esse período, foram realizadas mais de 2.500 horas de trabalho voluntário em torno dos projetos, tendo sido realizados mais de 40 reuniões e 14 eventos públicos. O projeto recebeu recentemente uma palavra de incentivo do Presidente da República e apresentou publicamente os seus resultados ontem, 10 de junho, dia de Portugal, num evento designado «Construir Comunidade».
Retomando a preocupação inicial, há três lições fundamentais que a experiência de Santiago pode trazer para a reflexão sobre o momento atual da democracia. Em primeiro, o valor do comum, isto é a importância de se conseguir encontrar as motivações, as organizações formais ou informais e os espaços adequados para mobilizar os cidadãos em torno da realização de ações em conjunto em prol do bem comum. Em segundo, o potencial das comunidades de bairro como lugares de recursos relevantes, invisíveis e nem sempre devidamente valorizados, ingredientes fundamentais para serem transformados colaborativamente e de uma forma experimental em ações úteis à comunidade e ao seu quotidiano. Em terceiro, a necessidade de se criarem momentos de experimentação de práticas e de encontro de saberes, dos empíricos aos científicos, eventualmente com algum risco, e de se estudarem os seus resultados para posterior melhoria e replicação noutros contextos.
Em síntese, o caminho para resolver a crise da democracia representativa pode passar por não ter receio de experimentar novas formas de democracia participativa.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico