De 2019 a 1969, viagem ao fundo de uma crise académica de Coimbra

Crise de 69 - O Ano em Que Sonhámos Perigosamente, do encenador Ricardo Correia, estreia na quinta-feira, no Convento São Francisco

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José Hermano Saraiva encara a objectiva. Os olhos oscilam entre o papel e a câmara e a expressão entre o fastio e a cólera. O registo é diferente daquele que lhe ficou associado por conta das décadas que passou a comentar ou a narrar programas televisivos, a partir da década de 1980. Aí, assumia um ar professoral, explicativo. Todavia, em 1969, quando arrancou a crise académica de Coimbra, era ele o ministro da Educação Nacional e é nessa qualidade que lê um comunicado transmitido pela RTP, a 30 de Abril. A desordem na Universidade de Coimbra não seria tolerada, avisava. 

Quando o público se depara com figura de Saraiva, projectada à largura de uma parede, a linha do tempo já recuou à década de 1960. Mas Crise de 69 - O Ano em Que Sonhámos Perigosamente, o mais recente trabalho do encenador Ricardo Correia, produzido pela Casa da Esquina para o Convento São Francisco (CSF), em Coimbra, começa bem depois. 

O espectáculo em formato de visita guiada começa agora, em 2019, na exposição do fotógrafo Virgílio Ferreira, Memorial de Uma Inscrição, que assinala os 50 da Crise Académica de Coimbra, com imagens actuais de pontos da cidade ligados à convulsão de 1969 e à resistência ao Estado Novo. Entre outros lugares, são retratadas as repúblicas, as casas onde fermentou o movimento estudantil, a Praça da República, ou o Departamento das Matemáticas, na alta universitária, edifício cuja inauguração marcou o início da crise. 

Na exposição instalada numa divisão ao cimo do grande auditório do CSF, Ricardo Correia e Sofia Coelho, que com Joana Corker trabalhou na criação do espectáculo, começam a descrever um país “a preto e branco numa Europa a cores”. É aí que a linha do tempo começa a ser puxada atrás. “Quisemos começar hoje e voltar a 69. A linha vai passando pela nossa investigação documental, pela recolha de testemunhos, pela nossa participação esporádica nas celebrações”, começa por explicar ao PÚBLICO Ricardo Correia

Os testemunhos recolhidos são os de vários académicos que se debruçaram sobre o assunto: a investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril, Manuela Cruzeiro, que esteve envolvida na crise enquanto estudante, o historiador Rui Bebiano, que estudou na Universidade de Coimbra no período pós-crise, ainda antes da revolução de 1974, e Miguel Cardina, de uma geração mais recente, que trabalhou o temos dos movimentos estudantis no Estado Novo. 

É através do seu olhar que se vai questionando uma certa narrativa oficial da crise académica de 1969, mais ou menos fixada e repetida a cada aniversário redondo e o que significa hoje esse acontecimento marcante. Pelo meio, a percurso vai intercalando a história oficial, a história subjectiva e a história do próprio edifício, dos tempos em que foi uma fábrica de lanifícios à aquisição pelo município, para que fosse transformado em sala de espectáculos. 

Início do filme

A visita guiada conhece o último ponto na blackbox, ao nível do fundo do grande auditório. “A partir daqui daqui, é como se encontrássemos o início do filme e começamos a ver alguns momentos em que inserimos Portugal, país fechado em si mesmo, neste mundo polarizado” pela Guerra Fria. O exercício é feito também para reflectir como é que, “na altura em que o homem está a pisar a lua, o Beckett está a ganhar um prémio Nobel, o David Bowie está a lançar o Space Oddity”, esta cidade que é Coimbra se insere neste universo. 

O início do filme é 17 de Abril de 1969, dia da inauguração do edifício das Matemáticas, em que o então presidente da direcção-geral da Associação Académica de Coimbra, Alberto Martins, pediu ao presidente da República, Américo Tomás, para falar em nome dos estudantes, que defendiam uma reforma no sistema de ensino. A palavra foi negada, seguindo-se manifestações, greve às aulas, detenção e suspensão de estudantes, bem como a repressão das autoridades, num processo que durou meses que só seria abafado com a incorporação compulsiva de 49 estudantes nas forças armadas. 

“De 1989 até agora, [a crise] tem sido celebrada e têm sido sempre os grandes líderes a falar. Há já uma espécie de discurso, uma espécie de cassete, que já sabes o que vai acontecer”, refere o encenador, habituado a trabalhar o teatro documental. O objectivo do trabalho era, precisamente, encontrar a “história paralela à história”, à margem da “grande narrativa”, acrescenta.

Na quinta e na sexta-feira o espectáculo Crise de 69 - O Ano em Que Sonhámos Perigosamente tem duas sessões e uma no sábado, o último dia em que está em exibição. 

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