O populista e o tecnocrata fazem mal à União Europeia
A ascensão do populista é hoje um sintoma maior do mal instalado. Vejamos como se alimenta da tecnocracia.
1. Mesmo sem a tecnocracia jurídica da União Europeia a atormentá-lo, qualquer cidadão consciencioso pode ter pesadelos se ficar a matutar no teor artigo 6.º do Código Civil português: “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.” Mas se consultar regularmente o Jornal Oficial da União Europeia sujeita-se a uma experiência ainda mais traumática e frustrante. A redacção e a terminologia são, frequentemente, impenetráveis, como exige a boa escola tecnocrática. Suponham, por exemplo, que se deparam com um texto com frases de 160 palavras, sem qualquer ponto. Imaginem que tinham de voltar atrás quatro ou cinco vezes, para ler e reler esse mesmo texto, tentando apanhar o sentido. Mas, depois desse esforço, não conseguiam ainda ter a certeza se o tinham apreendido correctamente. Se fosse uma leitura opcional ignoravam-no. Poucos perderiam tempo com uma escrita enfadonha, repleta de frases demasiado longas e intercaladas com um quase jargão impenetrável. Alguns estarão a interrogar-se: “mas que lixo é esse?” O problema é que não se trata de um qualquer texto ficcional mal escrito, que não consegue comunicar numa escrita elegante e clara. É um caso real de prosa jurídica utilizada na União Europeia. Pode encontrar-se na Directiva (UE) 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Abril de 2019 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital e que altera as Directivas 96/9/CE e 2001/29/CE — é mesmo o nome na designação oficial.
2. Há uma obra-prima de opacidade tecnocrática no artigo 10.º n.º1 da referida Directiva (UE) 2019/790 (intitulado “Medidas de publicidade”). Vou reproduzi-lo aqui integralmente pois merece ser lido e comentado: “Os Estados-Membros devem assegurar que as informações das instituições responsáveis pelo património cultural, das entidades de gestão colectiva ou das autoridades públicas competentes para efeitos de identificação das obras ou outro material protegido fora do circuito comercial e que sejam abrangidos por uma licença concedida nos termos do artigo 8.º, n.º 1, ou que sejam utilizados ao abrigo da excepção ou limitação prevista no artigo 8.º, n.º 2, bem como as informações sobre as opções disponíveis para os titulares de direitos a que se refere o artigo 8.º, n.º 4, e, assim que se encontrarem disponíveis e, se for caso disso, as informações sobre as partes incluídas na licença, os territórios abrangidos e as utilizações sejam disponibilizadas de forma permanente, fácil e eficaz num portal público em linha único a partir de, pelo menos, seis meses antes de as obras ou outro material protegido serem distribuídos, comunicados ao público ou colocados à disposição do público, de acordo com a licença ou ao abrigo da exceção ou limitação.”
3. A leitura do excerto legislativo anterior faz perder o fôlego a qualquer um. É desconcertante. Afasta o cidadão deixando-o a pensar: “isto não é para mim”. De facto, de imediato, não é mesmo. A directiva é dirigida aos Estados-Membros, para criarem ou modificarem a sua legislação. Mas não se iludam: se não perceberam o que diz o texto da directiva também não vão perceber a legislação nacional que for criada para a transpor. O cidadão já tem hoje de resistir à expansão do “tecnocratês” de inspiração (neo)liberal. Aí são usados, frequentemente sem qualquer significado útil palpável, termos como projecto, missão ou estratégia. Anglicismos como player, target ou report dão um conteúdo mais estilizado a esse repertório. Mas o “tecnocratês” jurídico levanta um problema mais sério do que o uso de uma linguagem económico-empresarial pseudo-erudita: são leis para cumprir. Textos com frases intermináveis e pulverizados com vocabulário hermético ou deliberadamente vago retiram poder ao cidadão. Transferem-no para aqueles que executam (governantes, comités de peritos, etc.) ou aplicam o direito aos casos concretos (juízes e outros juristas). Todavia, esta forma de funcionar afecta a confiança em quem governa. Mais cedo ou mais tarde — sobretudo em épocas de crise — gera frustração, impotência e revolta. A ascensão do populista é hoje um sintoma maior do mal instalado. Vejamos como se alimenta da tecnocracia.
4. O populista e o tecnocrata são irmãos desavindos. O populista é uma espécie pelo menos tão antiga quanto a democracia. O tecnocrata é mais uma criação da ciência moderna e do Iluminismo. Precisam um do outro para terem poder e prestígio social. Ambos procuram instrumentalizar o cidadão, embora de forma oposta. O tecnocrata usa uma linguagem obscura e cheia de termos estranhos ao uso comum. Invoca argumentos técnicos e científicos que deviam ser esclarecedores. Na realidade, está pouco interessado em que o vulgar cidadão o compreenda. Não faz qualquer esforço sério para simplificar a comunicação. A linguagem que usa traz-lhe poder e prestígio social. Intimida, assim, o cidadão que se amedronta pela sua ignorância. Como se sente ignorante, é levado a dar poder ao tecnocrata. O populista segue o caminho contrário. Se o tecnocrata recorre a uma (sobre)complexificação da realidade e a uma linguagem opaca como forma de prestígio e poder, o populista inverte o processo. Faz uma deliberada (sobre)simplificação da realidade e usa uma fraseologia vulgar e demagógica. A linguagem anti-intelectual e anti-técnica é a sua fonte de poder. O cidadão confia no populista não apenas porque entende o que ele diz, mas porque acha que revela verdades que o tecnocrata (e o político) escondem.
5. O tecnocrata, tal como o populista, convive bem com quase todas as ideologias. No espectro político, viajou da esquerda para a direita. Mas pode fazer o percurso inverso se a oportunidade surgir. No século XIX e inícios do século XX os maiores admiradores do tecnocrata eram socialistas, comunistas e outros progressistas. Saint-Simon e Karl Marx, embora sob formas diferentes, acreditavam no bom governo pela ciência. A planificação da produção foi uma expressão dessa superior visão onde o tecnocrata era crucial. Na prática, levou muitos à fome e à miséria. A União Soviética de Lenine e a China de Mao Tsé-Tung exemplificam combinações de socialismo-comunista e tecnocracia. Na primeira metade do século XX, o charme da tecnocracia atraiu ainda muitos na direita radical e totalitária. A Alemanha nacional-socialista (nazi) prosseguiu a sua própria forma de governo de especialistas (a qual também se mostrou útil para exterminar judeus). Esta última forma de tecnocracia colapsou com a II Guerra Mundial. Mas, nas últimas décadas, surgiu uma outra vaga de tecnocracia. Está ligada ao pensamento económico liberal, ou neoliberal, na designação preferida pelos críticos. Hoje, há muitas formas de tecnocracia nas diferentes esferas da vida humana. Uma particular, já aqui destacada, é a ânsia do tecnocrata europeu em criar legislação e regulamentar, algo que, supostamente, melhora a vida do cidadão.
6. Ao contrário do populista, que apela ao povo num plebiscito permanente, o tecnocrata normalmente acredita numa meritocracia, da qual se vê como representante. Ambiciona o poder de cargos públicos, mas sem se submeter à escolha democrática do cidadão. Para ele, um político eleito nem sempre faz boa governação, servindo antes uma clientela e um partido. Assim, a melhor alternativa para o bem comum é o seu saber especializado. Ao contrário do político, não precisa de agradar a quem o elege (não foi eleito), nem a um partido (será apartidário). Desde os anos 1950, com a fundação das Comunidades, dispõe na construção europeia de possibilidades únicas, que estavam fechadas a nível nacional. Uma construção feita por elites trouxe extraordinárias oportunidades de poder e prestígio. Não é por acaso que a União Europeia desperta paixões entre os tecnocratas, uma classe normalmente desapaixonada. Têm aí o terreno que sempre ambicionaram: na Comissão, no Banco Central Europeu, no Tribunal de Justiça, ou na infindável comitologia e “grupos de sábios” que gravitam à volta desta. (Ver Comissão Europeia, “Comitologia”). Mas há um preço a pagar. Um tecnocrata com poder cria anti-corpos na sociedade. A dupla Mario Draghi / Matteo Salvini não surgiu de um acaso. O poder do banqueiro Mario Draghi, Presidente do Banco Central Europeu e ex-Vice-Presidente da Goldman Sachs, gerou ressentimento na população italiana. Foi nesse terreno que cresceu o populista Matteo Salvini, actual Vice-Primeiro Ministro de Itália, da Liga (direita radical). Hoje não é mais possível prosseguir com uma construção europeia dominada por tecnocratas sem o risco de revolta do cidadão.