O perfume de Solange só não fez parar a chuva no Nos Primavera Sound
Chuva e menos público do que nos últimos anos, mas bons e diferentes concertos, como sempre, com Solange, Jarvis Cocker, Danny Brown ou Stereolab. Foi assim a primeira noite do festival.
A música popular tem a mania que é progressista, integradora e diferente. Mas é tanga. Tem os vícios e manias que os seres humanos transportam consigo para todo o lado. Só assim se percebem as inúmeras discussões que antecederam mais uma edição do festival Nos Primavera Sound em torno dos géneros musicais e dos modelos de apresentação ao vivo.
A primeira noite foi exemplar para mostrar que vale tudo, desde que possua qualidade artística, seja ela a elegância coreográfica do espectáculo de Solange, a orquestra pop imaginativa dos Stereolab, o ritual para ritmos e voz de Danny Brown, o classicismo teatralizado de Jarvis Cocker ou a soul que também é rock de MorMor. Diversidade, eis o lema da primeira noite do festival.
Tem sido sempre assim, aliás. A diferença, desta vez, é que entre os nomes mais abrangentes não figura quase nenhum artista de linhagem mais rock, o que não significa que ela não esteja lá representada. O que se notou foi menos público do que o habitual para uma primeira noite. De resto, nada de novo. A não ser, talvez, o clima, mas até isso começa a ser um ritual. Ora fez sol, ora fez frio a sério e o céu apareceu carregado, desabando em chuva por várias vezes ao longo do dia e noite. Nem o requinte e a elegância austera do espectáculo da americana Solange Piaget, também conhecida como Solange Knowles, ou “irmã de Beyoncé” – ou, mais exactamente, apenas por Solange –, conseguiram escapar de uma chuvada já na parte final.
Em Portugal ela ainda não se afirmou na plenitude. E percebe-se porquê. Para muitos ainda está conotada com os terrenos fáceis da pop mais massificada. Um equívoco tremendo. A sua música, em particular a do último e magnífico álbum deste ano (When I Get Home), está longe de ser fácil. E os seus espectáculos são momentos de um requinte estético extraordinário, sem nunca recorrerem a facilitismos de qualquer ordem (pena que, por indicação expressa da artista, não haja imagens para o testemunhar).
Parece estranho dizer que, mesmo com sete músicos em palco, incluindo sopros, duas cantoras de apoio e seis bailarinos, não foi um momento opulento. Mas é isso mesmo. O que prevaleceu foi o rigor, o minimalismo, o encontro de formas, sons e espaços capazes de promover momentos de celebração, mas acima de tudo geradores de introspecção. Daí que, a dada altura, a ouçamos dizer que gostaria de transformar aquele anfiteatro num santuário.
O cenário é de uma simplicidade e de uma beleza desarmantes, com o desenho de luz a fazer prevalecer o preto e branco. Em cima do palco, toda a gente de preto, movimentando-se de forma depurada, enquanto música e vozes parecem flutuar pelo espaço. Nos primeiros 40 minutos não há paragens entre os temas, mesmo quando ela comunica com o público, falando mais de espiritualidade do que de empoderamento feminino.
Tudo é, ao mesmo tempo, contido e complexo. A voz sugere intimidade, mas também é capaz da expressão mais emocional, e a música parece um mantra de inúmeros sintomas (soul, jazz, funk, R&B, algum hip-hop), quase sempre em câmara lenta, abrindo-se a sons inesperados de teclados em canções que respiram tempo e imaterialidade. E depois existe a sua presença empática, descendo até ao público, interagindo com ele sem que nada pareça desarmónico, denotando graciosidade na forma como partilha com a plateia que a reduzida roupa da parte de cima lhe está a pregar algumas partidas, deixando entrever um dos seios na sua quase totalidade.
Pelo meio, também regressou aos seus anteriores álbuns (de Cranes in the sky a Losing you) mas é a intensidade voluptuosa do seu mais recente registo que predomina. Já na parte final abateu-se um curto dilúvio sobre a assistência, com muita a gente a fugir na relva ensopada; os que ficaram foram agraciados com um extra mais longo do que o habitual, com passagem pela sensualidade de Don’t touch my hair, forma de agradecer a dedicação dos que resistiram à chuva. E valeu mesmo a pena.
Do passado e do presente
Antes, no mesmo palco, tinha actuado Danny Brown, outro exemplo do cenário da música urbana actual. E tal como Solange difícil de encaixar. Sim, a sua cultura é o hip-hop, mas é nitidamente um artista idiossincrático, com um timbre vocal singular, num tom agudo, quase esganiçado, e uma presença entre o cómico e o desafiador – corre o palco de ponta a ponta, enquanto atrás de si se posiciona o DJ, lança sons robustos de graves ou electrónicas desvairadas, como se Aphex Twin tivesse resolvido fazer um álbum de hip-hop, mostra grande destreza no microfone. O público, em especial aquele que se posicionou mesmo lá à frente, não se poupou, criando um ritual de celebração com o músico.
À mesma hora, num outro palco, outra figura do hip-hop, esta portuguesa, Allen Halloween. Só vimos, claro, um pouco. O bastante para ficar a ideia de que a sua sonoridade sombreada, as palavras de intensidade poética e o imaginário que ele, coadjuvado por mais duas vozes e um DJ, consegue convocar para palco merecem mais exposição do que tem tido.
E para algo simultaneamente igual e diferente, eis Jarvis Cocker e os Stereolab. Quem já viu várias vezes ao vivo o ex-Pulp – como é o nosso caso – dirá que esteve igual a si próprio. Ou seja, é sempre diferente. É verdade que o modelo não varia, teatral, charmoso, irónico, dançante, não se coibindo de ir ao baú dos Pulp, mas ao mesmo tempo surpreendendo, seja na relação com a assistência ou na música que apresenta, optando desta vez por canções pouco assimiladas, com sopros, harpas e violinos ao barulho, enquanto salta do rock para a soul, de ritmos esfuziantes para momentos mais envolventes, sempre com muita classe.
Foi longo o seu concerto, pelo que deu para ir olhar MorMor, o canadiano que talvez melhor personificou o eclectismo da primeira noite: negro, voz em falsete por vezes, praticante de uma pop alternativa que tem tanto de soul como laivos de rock, mas sempre com grande consistência, como o demonstram canções como Outside ou Heaven’s only wishful. Quando estava na última canção mais um dilúvio se abateu sobre o recinto, mas o principal já estava feito: mostrar que tem tudo para dar certo no futuro.
Um regresso ao passado futurista foi depois a proposta dos Stereolab, grupo que marcou os anos 1990 e 2000, e que regressou agora ao activo depois de um longo hiato. O que dizer? Que a sua música pop espacial, lúdica, inventiva, tão devedora do jazz, do krautrock ou do easy-listening, continua tão actual como no primeiro dia. Para quem os foi acompanhando ao longo dos anos, como é o nosso caso, foi como regressar a uma casa confortável que reconhecemos como sendo nossa.
Sente-se que as cicatrizes e a marca da passagem do tempo estão lá – depois de mais de uma dúzia de álbuns, da morte de Mary Hansen e da separação do casal Tim Gane e Laetitia Sadier –, mas a música mantém a vitalidade. Não haverá muitos exemplos na pop actual de tanta inventividade e apuro técnico. Acabaram em desvario total, conquistando quem com eles cresceu, e muitos dos que nunca os tinham ouvido na vida.
Esta sexta-feira o festival prossegue com Aldous Harding, Courtney Barnett, J Balvin, James Blake, Mura Masa, Fucked Up, Interpol, Branko, Nubya Garcia, Sons Of Kesmet, SOPHIE ou JPEGMafia. Irá do rock ao hip-hop, do reggaeton ao jazz, da electrónica melancólica à mais festiva. Ou seja, espelhará o mundo da música, hoje, sem grandes fronteiras estilísticas ou geográficas.