A felicidade não tem de aparecer só no fim da história, diz Miguel Castro Caldas

A nova peça do dramaturgo, em estreia absoluta esta sexta-feira nos Festivais Gil Vicente, em Guimarães, examina os fossos na comunicação entre personagens, mas também entre palco e plateia. Uma reflexão sobre o teatro e também sobre a possibilidade de representar a felicidade.

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PAULO PIMENTA

Quando Miguel Castro Caldas começou a pensar Enseada, a obra que se estreia esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, baseou-se na primeira frase da Anna Karénina de Tolstói: “Todas as famílias se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Autor de O homem do pé direito e Se eu vivesse, tu morrias, estreada em Fevereiro do ano passado, o dramaturgo quer agora reflectir sobre a felicidade, mas não propriamente sobre a sua busca ou a sua destruição. “Normalmente, a felicidade aparece só no princípio ou só no fim da história”, explica no Centro de Criação de Candoso, onde esteve em residência artística.

A sua nova peça, integrada na 32.ª edição dos Festivais Gil Vicente, visa explorar, sim, a possibilidade de representar a felicidade numa narrativa de pouco mais de uma hora. As personagens sobre o palco, explica, vão evocar uma relação familiar, com diálogos aparentemente tão rotineiros que, a certo ponto, dão a sensação de que “as pessoas não pensam no que estão a dizer”. Para Miguel Castro Caldas, esses automatismos levantam questões: até que ponto duas pessoas que comunicam podem estar em sintonia, no mesmo plano? E como é que essa relação espelha a relação entre palco e plateia?

Influenciado por The Artist is Present, da performer Marina Abramovic, o dramaturgo crê que, por mais directa que seja a relação entre duas pessoas – quando estão a olhar directamente uma para a outra –, há quase sempre “uma falha intrínseca” entre elas. Miguel Castro Caldas também explorou a questão em Se eu vivesse, tu morrias, fornecendo o texto da peça aos actores e também ao público. Nessa obra, quis mostrar, com “algum cinismo”, que as “palavras são mal-entendidos”, mas o propósito de Enseada é mostrar que apesar de tudo as pessoas sabem entender-se. “O encontro só é possível se houver um desencontro, mas este trabalho tem um pouco mais de fé”, reitera. O próprio título da obra remete para a ideia de porto de abrigo.

Outra das propostas que Enseada procura transmitir é a de que a “realidade e ficção coexistem sempre no teatro”, já que a plateia vê o personagem e o actor que lhe dá corpo ao mesmo tempo, “no mesmo plano”.

O dramaturgo diz no entanto, que a felicidade é uma ideia impossível de ser representada num palco. No máximo, uma pessoa pode olhar para uma outra e “constatar que ela tem o ar de ser feliz”. “Uma pessoa feliz não o pode representar. A felicidade é real ou não. Não está no plano da ficção”, vinca.

Em Enseada, os diálogos repetem-se, mas sempre com pequenas variações, para evocarem precisamente a ideia de automatismo, explica o dramaturgo. Alguns deles são influenciados por Hamlet, de Shakespeare. Já a cena final é inspirada pelas obras A Casa de Bonecas e Hedda Gabler, criadas no final do século XIX por Henrik Ibsen.

O autor salienta ainda que esta sua mais recente obra foi o resultado de um processo criativo que envolveu os actores na descoberta e na discussão. Desde o final de 2018, com várias reuniões e várias interrupções, houve tempo para “ir escrevendo e experimentando”: “Eu tenho um problema com a maneira de fazer teatro hoje em dia, com uma peça escrita em dois meses. Preciso de mais tempo.”

Uma das actrizes de Enseada, Marta Félix, acrescenta precisamente que as interrupções no processo criativo lhe permitiram ter tempo para procurar várias direcções artísticas por onde seguir, estabelecido o ponto de partida. Já Márcia Lança, outro dos elementos do elenco, composto ainda pelo actor Élvio Camacho, diz que as ideias só surgiram depois de estabelecido o método de trabalho: “Não há uma ideia que pré-existe. Há um fazer que nos leva a elas.”

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