Tiago Lima leva Foster Wallace para um teatro de terra batida

Baseado na obra de David Foster Wallace e no universo do ténis, Tiago Lima estreia no Teatro da Politécnica a sua primeira peça e encenação: Dave, Queda-Livre.

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David Esteves e Cristina Carvalhal em "Dave, Queda-Livre", o primeiro texto e a encenação inaugural de Tiago Lima cortesia Eduardo Frazão

É possível que seja acidental, mas não deixa de revelar-se especialmente adequado que Dave, Queda-Livre, o primeiro texto e a encenação inaugural de Tiago Lima, se estreie em pleno Roland Garros. E isto porque Dave é um tenista atacado pela solidão e por uma relação manca com o mundo à sua volta; e é um tenista inspirado tanto em A Piada Infinita, de David Foster Wallace, quanto na biografia do escritor norte-americano – que, recorde-se, publicou um livro de ensaios sobre ténis intitulado String Theory, quis ele próprio dedicar-se à prática desse desporto e injectou esse universo na sua ficção. Mas Dave é, mais do que tudo o resto, um miúdo em busca do seu pai.

Dave, Queda-Livre, em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, de 4 a 8 de Junho, começa com a leitura de uma carta escrita por Dave (David Esteves) aos dez anos. A mãe (Cristina Carvalhal) lê o desabafo do filho, em que este manifesta o desejo férreo de procurar o pai (Pedro Lacerda) e lista os cinco melhores sítios para encontrar pais perdidos ou os cinco géneros de roupa que os pais mais vestem quando se perdem dos filhos. E isto porque, sendo uma peça carregada de ténis – o chão do palco estará coberto de saibro, como se estivéssemos, de facto, em Roland Garros –, com Foster Wallace a ter por companhia no cardápio de influências a biografia (Open) do ex-tenista Andre Agassi ou o cinema de Wes Anderson (é fácil lembrar Os Tenenbaums ​ Uma Comédia Genial e um Owen Wilson enquanto génio do ténis que cede a um colapso emocional), o texto circula muito em torno desta perda filial e da desorientação que provoca.

Impulso para a escrita

Recuemos um pouco para perceber o quanto há mais do que literatura a ser vertido para Dave, Queda-Livre. Tiago Lima vivia em Leiria quando, na adolescência, deixou a casa da mãe para passar a coabitar com o pai, em Lisboa. Foi nessa altura que começou a definir o seu futuro ao matricular-se na Escola Profissional de Teatro de Cascais. Apesar de recear que o ambiente escolar o pudesse vir a privar do prazer que tinha em fazer teatro, no segundo ano do curso começou a perceber que fervia em si um impulso para a escrita que não podia ignorar. “A ideia inicial desta peça”, conta ao PÚBLICO, “era a relação de um pai e de um filho, muito baseada na relação que tive com o meu pai – porque nunca tinha vivido com ele e foi uma descoberta para mim.”

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"Dave, Queda-Livre" (David Esteves é Dave), em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, de 4 a 8 de Junho cortesia eduardo frazão

Muitas outras etapas cruzaram o seu caminho e transformaram Dave, Queda-Livre numa peça muito menos literal, deixando de ser um espelho directo da sua biografia. Terminou o curso em Cascais a escrever (sob orientação de Beatriz Batarda) um monólogo a partir da vida de António Lobo Antunes, seguiu para a Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), participou em criações de Miguel Graça, Gonçalo Waddington e Miguel Loureiro, e depois resolveu tirar “uma espécie de ano sabático”. Voltou a Leiria e enfiou a cabeça em livros de Foster Wallace, Karl Ove Knausgaard, Nietzsche ou Michel Houellebecq e, às tantas, a meio do imenso A Piada Infinita, achou que havia uma peça de teatro a extrair daquele vaivém entre a academia de ténis e o centro de reabilitação.

“A ideia começou por aí, mas o universo expandiu-se e passou a não ser só a relação entre pai e filho, passou à relação de toda uma família”, explica. A Foster Wallace foi ainda buscar o excesso de informação – não haverá autor que tenha explorado tão profusamente as notas de rodapé – e o tédio (comum a Knausgaard), insinuado pelos minutos iniciais de Dave, diante de uma música que custa a silenciar-se. Apesar de trazer para a escrita uma série de referências literárias, Dave, Queda-Livre, não tropeça nesses nomes e constrói-se como um conjunto de quadros que fazem zoom sobre a relação de Dave com o irmão, a mãe e o pai, sobre a forma anestesiada com que a mãe se entrega ao trabalho depois do desaparecimento do pai, a troca de argumentos que Dave trava com Deus, a invenção de bebidas que potenciam o rendimento físico no court ou as estratégias para desligar do mundo todas as noites e adormecer. Para a frente e para trás no tempo, vamos acompanhando Dave até ele não poder mais.

Dave, Queda-Livre chegou a ser equacionada como peça a apresentar pel’Os Possessos, há um ano, na Culturgest. Mas não tardou a tornar-se evidente que a primeira criação de Tiago Lima, 24 anos, era demasiado pessoal para ser partilhada na escrita e na encenação com a companhia. Em vez disso, Tiago juntou-se à equipa que escreveu O Novo Mundo, d’Os Possessos, e manteve Dave como um projecto pessoal que só agora se estreia, numa altura em que não terminou ainda a ESTC. E que está a levá-lo a descobrir uma maturidade como autor que, acredita, ainda não conseguiu descortinar como actor. Também por isso, hoje o seu sustento é garantido a trabalhar num bar. Para se certificar que o teatro se mantém uma zona de prazer intocado.

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