Serralves em Festa, “100% feminista”, com MC Carol a cantar o seu Brasil
Na primeira vez em Portugal, a “rainha feminista” esteve em destaque no sector musical de uma programação onde cabem todas as artes, que também contou com a drag queen Christeene, o prog dos Elephant9, o encontro jazz com a electrónica do Khalab Trio, HHY & The Macumbas e Conjunto Corona.
“Estava a precisar disto”, ouviu-se MC Carol dizer já quase para ninguém ouvir, enquanto saía do palco, antes de se atirar para os braços abertos de um membro da sua equipa, que a esperava na lateral. Não sabemos se aquele desabafo foi motivado pela recepção calorosa que teve na sua estreia em Portugal ou se porque mais uma vez chorava a morte de mais um “menino assassinado” pela polícia nas ruas do Brasil.
Tinha acabado de cantar Delação premiada, dedicada a Lucas Morais, 18 anos, “morto por policiais”, a quem endereçou o tema. Conhece esta realidade desde que nasceu, aprendeu a contorná-la, quanto vivia no seu “barraco”, de onde deu o salto até onde está agora. Não a esqueceu e aos 25 anos cantou o feminismo, o anti-colonialismo, a liberdade sexual e a realidade crua das ruas que conheceu para uma plateia de muitas centenas de pessoas de cima do palco do Prado, na 16.ª edição do Serralves em Festa.
Funk brasileiro, feito por mulheres, pelas mulheres e para toda a gente, MC Carol tornou Serralves “100% feminista”, numa edição da festa de todas as artes em que a drag queen Christeene ali defendeu o direito a ser o que se quiser ser, os Elephant9 montaram uma jam session ao ar livre, o Khalab Trio promoveu um encontro entre o jazz e a electrónica e os portugueses HHY & The Macumbas evocaram os xamãs, enquanto o Conjunto Corona pintava com hip-hop o cenário chunga e foleiro, mas irresistível, dos subúrbios do Porto.
A música é uma parte pequena de um programa extenso onde cabem todas as artes, mas sempre com peso e relevância suficientes para justificar que os visitantes optem por montar lugar cativo junto aos palcos onde há apenas e só concertos. Foram mais de quatro dezenas, entre sexta-feira e domingo – o PÚBLICO esteve lá nos dois primeiros dias.
Escolheram juntar-se perto do palco do Prado centenas de pessoas (talvez se possa arriscar milhares) para receber, na madrugada de domingo, às 2h45, MC Carol, na sua estreia absoluta em Portugal – para a noite desse mesmo dia tinha concerto marcado para Lisboa, na ZDB. Várias línguas de vários países e vários sotaques de português ouviam-se pelo relvado daquela zona, não só do português que se fala em Portugal, mas também do que se fala no Brasil.
Diferenças culturais à parte, a mensagem terá passado para quem lá estava, que em grande número entoou em coro as letras. Carol recordou que não foi Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil: “Professora me desculpe, mas agora vou falar/ Esse ano na escola as coisas vão mudar/ Nada contra ti, não me leve a mal/ Quem descobriu o Brasil não foi Cabral/ Pedro Álvares Cabral chegou 22 de Abril. Depois colonizou, chamando de Pau-Brasil”, diz em Não foi Cabral.
Em 100% feminista toca na ferida e conta a sua experiência: “Presenciei tudo isso dentro da minha família/ Mulher com olho roxo, espancada todo dia/ Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia que mulher apanha se não fizer comida/ Mulher oprimida, sem voz, obediente, quando eu crescer eu vou ser diferente/ Eu cresci. Prazer, Carol bandida/ Represento as mulheres. 100% feminista”.
Recordando a morte no dia anterior de um “menino assassinado pelos policiais”, passou por Delação premiada: “Na televisão a verdade não importa. É negro favelado, então estava de pistola”. Antes disso, sem preciosismos e sem tentar ser outra coisa que não é, recordou Felling good, de Nina Simone.
MC Carol vai buscar à alma o que o coração, perto da boca, não bloqueia. Ao som da batida do funk brasileiro canta o que este género musical dantes não deixava entrar. Fala de sexo sem complexos, recusando-se a que a mulher continue a ser apenas um acessório fetiche do homem. Passa a protagonista, expõe os desejos e fantasias sem que o homem fique no primeiro plano. Passa para o centro. Não se esconde atrás de ninguém. Todos os temas que aborda, aborda-os de uma forma crua, com propriedade e em primeira mão. Emocional, à flor da pele, é o retrato, sem retoques e ajustes, do que viu, conhece e pretende alcançar.
Antes dela, na mesma noite, passou pelo mesmo palco o Khalab Trio. Bateria, saxofone e electrónica, com o italiano que dá nome ao grupo a assumir os botões. Jazz e música a roçar o improviso com ambientes por vezes mais etéreos e noutras alturas mais caóticos. Ainda que seja Khalab a dar o nome ao trio, são o baterista Tommaso Cappellato e a saxofonista Tamar Osborn, quase sempre a abafá-lo, que protagonizam e dão brilho às composições.
Na mesma linha de viagem musical improvisada, mas noutro universo sonoro, à tarde, os noruegueses Elephant9 foram à década de 1970 buscar matéria-prima para o seu prog-rock a roçar o psicadélico. No Ténis, os Black Bombaim apanharam o mesmo barco na direcção mais psych-rock. Antes disso, Filho da Mãe tinha estado no mesmo palco a colar camadas de guitarra com a sua loop station, abrindo caminho para o holandês Arp Frique entrar no palco do Prado para uma festa africana com cheiro a funaná.
Entre o chunga e o pornográfico
Entre Mafamude e Ermesinde, Serralves fica a caminho. Parou lá, na sexta-feira, de passagem, o Conjunto Corona, para entregar um hip-hop lo-fi que conta histórias de personagens que gravitam em torno do Porto e da sua área metropolitana. Em versão alargada, o duo teve mais uma vez em palco o apoio de Kron Silva, MC que fundou os Triângulo Dourado ainda nos anos 1990, e mais tarde os Governo Sombra. Entre outros convidados, estava lá também o “homem da meia”, presença assídua.
“Mafiando bairro adentro”, pela Pasteleira, por Contumil, pelo Falcão ou pelo Viso, o universo dos Corona passa por Cimo de Vila e acaba na pior estação de serviço de uma bomba de gasolina em Ermesinde, onde à porta se contam histórias que ninguém acredita serem reais – a realidade é mesmo assim, pode parecer menos plausível do que a ficção.
Venderam raspadinhas – o último álbum, Santa Rita Lifestyle, é vendido neste formato –, beberam hidromel, debateram sobre o aquecimento global e outros assuntos que podiam ter iniciado ao balcão de uma taberna escondida em Valbom. Meias brancas, chinelos, defenderam Mafamude, de onde são, ao som de Pacotes, Chino no olho ou Santa Rita lifestyle.
Já depois de os portuenses HHY & The Macumbas se terem juntado em palco a Adrian Sherwood para uma sessão xamânica de percussão e sopros, Christeene Vale, alter-ego drag queen do norte-americano Paul Soileau, levou o caos electrónico, por vezes a roçar o industrial, ao Prado. Sem tabus, entre o grotesco e uma performance muitas vezes explicitamente pornográfica, arrancou uma actuação acima do competente. Neste seu alter-ego, a imagem ocupa um lugar com preponderância; porém, a música que faz acompanha em perfeito equilíbrio a performance, sem nunca passar para segundo plano.
A 16.ª edição do Serralves em Festa deste ano terminou no domingo à meia-noite. Em 2018, passaram pela fundação no seu fim-de-semana de portas abertas 249 mil visitantes. Este ano, divulgou a fundação pouco antes de fechar as suas portas, voltou a bater-se um recorde: foram 264.750 os visitantes do Serralves em Festa 2019.