Máquina do Estado não estava preparada para descongelar progressões na carreira

Embora à primeira vista seja uma medida positiva para os trabalhadores, o descongelamento das carreiras motivou 145 queixas à provedora de Justiça. A culpa é das mudanças constantes na lei e da dificuldade dos serviços em aplicá-la.

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As progressões na carreira, descongeladas em 2018, têm sido motivo de contestação por parte dos funcionários públicos Rui Gaudêncio

O descongelamento das progressões na carreira, em curso desde Janeiro de 2018, é aparentemente uma medida positiva para os funcionários públicos, mas a sua aplicação não está a ser pacífica e no ano passado motivou 145 queixas à provedora de Justiça. Os dados constam do relatório anual da provedora de Justiça, divulgado nesta quinta-feira, que atribuiu o elevado número de queixas à dificuldade dos serviços em aplicar a lei após sete anos de congelamento.

O relatório dá conta de 1146 queixas relacionadas com os direitos dos trabalhadores (menos 6% do que em 2017), sendo que a maioria (974) diz respeito a relações de emprego público. É neste universo que surgem a 145 queixas relacionadas com o descongelamento.

No documento, a provedora de Justiça Maria Lúcia Amaral começa por manifestar a sua estranheza com o facto de “uma medida de natureza positiva para os trabalhadores da Administração Pública” estar na origem de “um relevante número de pedidos de intervenção”.

A explicação, adianta, poderá estar na aplicação do “intrincado” regime jurídico de trabalho em vigor na Administração Pública e nas sucessivas mudanças a que esteve sujeito. A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas teve, entre 2014 e Março de 2019, uma média de duas alterações por ano (num total de 10), enquanto o Código do Trabalho (que também se aplica à função pública) foi alterado 13 vezes desde 2009. Se a isto se somarem as alterações ao regime laboral da função pública introduzidas nos vários Orçamentos do Estado, refere a provedora, “podemos ter uma ideia das dificuldades que enfrentam, quer os órgãos e serviços da Administração Pública, quer os seus trabalhadores”.

Por outro lado, durante o congelamento, que durou sete anos, os serviços não interiorizaram as alterações legislativas. “Só com o descongelamento das carreiras é que a administração foi confrontada com o reflexo remuneratório das vicissitudes que, entretanto, tinham ocorrido, vendo-se a braços com um número significativo de problemas de aplicação e de interpretação da lei que não tinham sido resolvidos, paulatinamente, até esse momento”, constata a provedora. Exemplo disso foi a necessidade de encontrar uma solução para suprir a ausência de avaliação no período do congelamento ou a avaliação ao ter em conta em situações específicas.

A provedora de Justiça identificou outra evidência na análise das queixas que recebeu relacionadas com esta questão: em caso de dúvida, a Administração Pública opta pela interpretação legal que custe menos dinheiro. E só se dispõe a rever essa posição “se o membro do Governo competente ou a Direcção-Geral da Administração e do Emprego Administração Pública Público se pronunciarem inequivocamente em sentido diverso”.

Entre as 145 queixas recebidas, algumas diziam respeito ao facto de os trabalhadores colocados em posições intermédias terem um impulso salarial “diminuto” com o descongelamento, outras eram oriundas de trabalhadores integrados em carreiras criadas durante o período do congelamento (no Ministério das Finanças e no Instituto Nacional de Estatística) e que viram a sua progressão afectada por isso. A provedora dá ainda conta de uma centena de queixas de docentes que foram ultrapassados por outros, por lhes terem sido aplicados, no momento do descongelamento, regimes de progressão distintos.

Serviços continuam a recorrer a precários

A provedora dá também alguma atenção ao Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários da Administração Pública (PREVPAP), iniciado em 2017 e que motivou 60 queixas, antecipando que em 2019 irá debruçar-se sobre o tema. 

Os trabalhadores queixaram-se dos atrasos na análise dos requerimentos e no lançamento dos concursos, de terem sido excluídos ou de não terem visto o tempo de serviço contado em processos de regularização anteriores.

À provedora chegaram ainda queixas de trabalhadores que não puderam ser opositores aos concursos abertos no âmbito do PREVPAP, “contestando a natureza fechada destes procedimentos”.

Nestas queixas, lê-se no relatório, “está em causa, não a actuação das entidades públicas envolvidas no programa e a sua aplicação ao caso concreto, mas o mérito deste programa e as suas disfuncionalidades e iniquidades”.

A provedora recomenda uma reflexão sobre o programa e sobre o regime de recrutamento na Administração Pública e alerta que lhe têm chegado “ecos” de que em alguns serviços que regularizaram trabalhadores ao abrigo do PREVPAP “continuam, ainda hoje e já depois daquela regularização, a utilizar-se os instrumentos de contratação que estiveram na génese das situações de precariedade a que se quis pôr fim”.

Atraso “vexatório” nas pensões

Na área da Segurança Social, Maria Lúcia Amaral recebeu 2854 queixas, um aumento de 39% face a 2017, das quais 923 estavam relacionadas com atrasos nas pensões. O problema não é novo, mas no ano passado os pedidos de intervenção por atrasos nas pensões mais do que triplicaram, com a provedora a dar conta de relatos de “desespero” e de “angústia” de pessoas que “se vêem privadas de qualquer rendimento por tempo indeterminado”.

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Maria Lúcia Amaral usou palavras duras para abordar o tema, considerando “vexatório”, o Estado não conseguir assegurar, “em tempo útil, o elementar direito de um cidadão idoso à protecção social adequada: o direito à pensão por velhice”.

Ao mesmo tempo a provedora alerta para o facto de o Estado tributar em sede de IRS as pensões atrasadas como se fossem rendimentos do ano em que as pensões são efectivamente pagas. “O Estado paga tarde, sem juros e ainda por cima, mercê do seu próprio atraso, tem um ganho injusto em sede de IRS, prejudicando ainda mais os pensionistas”, diz a provedora.

Nesta quinta-feira, o Governo aprovou um decreto-lei com medidas que visam mitigar os atrasos. O diploma prevê a atribuição de pensões provisórias de sobrevivência e de invalidez a quem cumpra os requisitos para aceder a estes apoios, em vez de se cingirem a quem está em situação de carência económica ou esgotou o período máximo do subsídio de doença.

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