As eleições europeias
Haverá quem acredite nesta ideia de projecção da “geringonça” no plano europeu. Lamento dizê-lo, mas só gente propensa a uma credulidade infantil pode cair neste ludíbrio.
1. Francisco Lucas Pires, ao que consta, terá afirmado um dia que as eleições constituem o mais passional dos acontecimentos políticos. Tê-lo-á dito num contexto de crise pós-eleitoral. A tese é interessante e aplicável, provavelmente, na esmagadora maioria dos casos. Há, contudo, excepções. No último domingo tal asserção não teve correspondência na realidade. Na sequência dos resultados eleitorais nada mudou, pelo menos à superfície, na vida política portuguesa. Os líderes partidários não foram questionados e as orientações estratégicas não originaram nenhum tipo de contestação especial.
Numa das mais fecundas afirmações filosóficas da nossa contemporaneidade Nietzsche proclamou que “não há factos, só há interpretações”. A tese é polémica e originou um amplo debate filosófico que se perpetua no momento presente. O que nos interessa aqui é a sua aplicação no plano político. Não há dúvida que perante realidades substancialmente idênticas é possível construir avaliações essencialmente diferentes. Isso observou-se nas eleições do passado domingo. Pela circunstância de ter sido um interveniente activo no penúltimo acto eleitoral europeu abstenho-me da formulação de considerações sobre o ocorrido nas pretéritas eleições. Há, porém, uma nota que não quero deixar de salientar. Visto de fora o processo eleitoral afigurou-se sofrível, muito distante da qualidade reconhecida aos principais protagonistas da contenda. Pedro Marques é muito melhor do que a burlesca figuração que pretenderam fazer dele. Paulo Rangel é, obviamente, pelas suas inquestionáveis qualidades intelectuais e políticas, um deputado europeu de eleição. Nuno Melo está muito para além do radical direitista a que o pretenderam reduzir.
O que terá concorrido para que personalidades políticas de inequívoca qualidade como aquelas que referi atrás, a que acrescento sem qualquer dúvida João Ferreira e Marisa Matias, possam ter originado uma campanha eleitoral tão débil e tão distante das grandes questões que animam o presente debate político europeu? Não é fácil responder a tal questão.
Há várias razões que concorrem para tão lastimável ocorrência. Uma delas consiste na maneira como a comunicação social aborda toda a discussão incidente sobre os temas europeus. Não tenhamos medo de enunciar a verdade. Uma parte dos nossos jornalistas não dispõe de uma cultura política suficiente que lhes permita uma abordagem séria e exigente dos temas existentes no espaço público europeu. Também aqui se verifica a falta de meios humanos com que se debatem hoje as redacções no nosso país. Sendo que os jornalistas continuam a desempenhar um papel fundamental na formatação do espaço público, esta insuficiência reveste-se de enorme importância. É certo que alguns protagonistas políticos rejubilam com tal debilidade, sempre prontos a utilizar a ignorância alheia como factor de promoção artificial de méritos objectivamente não existentes.
Contrariamente ao que se antecipava relativamente aos resultados eleitorais europeus, as grandes formações pró-europeístas continuaram a suscitar uma adesão maioritária do eleitorado. Há aqueles que, com a leviandade própria dos que se extasiam com a superfície das coisas, falam da emergência de uma espécie de “geringonça europeia”. A utilização desse conceito de génese exclusivamente portuguesa para caracterizar a situação é de um ridículo atroz. Não passa pela cabeça de ninguém a constituição de uma maioria parlamentar pró-europeia integrando formações políticas contrárias ao presente projecto europeu. Quando o primeiro-ministro António Costa fala de uma maioria progressista na Europa refere-se a algo substancialmente distinto da maioria parlamentar que assegura a governação em Portugal. Não só distinto como até contraditório. O que há de comum entre a vontade liberalizante de Macron em França e as opções anti-liberais do Bloco de Esquerda e do PCP em Portugal? Rigorosamente nada.
Haverá quem acredite nesta ideia de projecção da “geringonça” no plano europeu. Lamento dizê-lo, mas só gente propensa a uma credulidade infantil pode cair neste ludíbrio. O que António Costa tem feito no plano europeu, a meu ver bem, contradiz absolutamente a solução política prevalecente em Portugal.
2. Manuel Morais, pessoa que não conheço, revelou uma extraordinária coragem na forma como abordou a questão da existência de racismo no seio da sociedade portuguesa e, em particular, no interior das forças policiais. Estou certo que tudo o que disse corresponde à realidade. É óbvio que há racismo na sociedade portuguesa e que tal se manifesta no seio das mais diversas instituições, e nomeadamente também no interior das forças policiais. Por ter dito esta elementar verdade foi compelido a demitir-se das funções que desempenhava num sindicato policial. Estranhamente pouca gente expressou indignação perante o sucedido. É lamentável e preocupante que assim seja. Onde estão aqueles que habitualmente se indignam, e bem, perante toda e qualquer manifestação de racismo e de xenofobia? O que justifica tão arrepiante silêncio? Pela minha parte quero exprimir a minha absoluta solidariedade a Manuel Morais.