A corrosão das ideias e a corrupção dos números
Taxas de abstenção muito elevadas, superiores a 50%, são sempre indícios de sociedades “pós-democráticas” que caminham para o retrocesso da verdadeira liberdade e da verdadeira, sempre imperfeita e inacabada, Democracia.
Dizem alguns que vivemos uma idade da pós-verdade. O conceito de “pós-verdade” encontrou eco recente na Oxford Dictionaries, o departamento da universidade inglesa de Oxford que se dedica à elaboração de dicionários, que após muita discussão, debate e investigação, considerou a palavra post-truth (pós-verdade) a palavra do ano de 2016. E o consenso sobre o seu significado foi apresentado como sendo um neologismo que pretende caracterizar as circunstâncias em que factos objetivos são tornados menos relevantes e, a fim de moldar a opinião pública, usam-se apelos direcionados às emoções e às crenças pessoais. Segundo a mesma instituição, o termo “pós-verdade” com este tipo de significado foi usado pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo e romancista sérvio-americano Steve Tesich (1942-1996).
In a very fundamental way we, as a free people, have freely decided that we want to live in some post-truth world (Fundamentalmente, como pessoas livres, decidimos livremente que queremos viver num mundo de pós-verdade) foi o que escreveu Steve Tesich no ensaio A Government of Lies (Um governo de mentiras) publicado em 1992 na revista americana The Nation, em que tentou explicar a sua visão do modo como casos como o Watergate e a guerra do golfo pérsico transformaram a relação dos americanos com a verdade.
Estamos efetivamente a passar por tempos novos, acelerados e mediáticos. Tempos que o tempo ultrapassará; mas, para minimizar estragos, é bom acautelar e tomar providências que evitem a proliferação da “pós-verdade”. Somos confrontados com exemplos deste fenómeno praticamente todos os dias e nas mais variadas áreas. E da “pós-verdade” passamos rapidamente para a “pós-democracia”. Parece que estamos já cansados da Democracia, cansados de votar, cansados de participar … A abstenção aumenta, a participação nas eleições é cada vez menor … Votar para quê?
Repetida várias vezes, em vários meios de comunicação e por várias pessoas, uma ideia ou uma crença pode passar a tomar foros de verdade. É a “pós-verdade” que se alia à “pós-democracia”. Factos laterais e aparentemente não diretamente ligados a uma ideia ou crença revelam-se mais tarde essenciais para credibilizar a dita “verdade” perante a opinião pública. Eis um exemplo muito atual, que pode ser fértil para plantar “pós-verdades”: as eleições para o parlamento europeu e a fraca participação dos cidadãos “que tem vindo a aumentar”. Será efetivamente assim? A taxa de participação dos cidadãos nas eleições europeias tem vindo a diminuir? O voto de protesto tem vindo a aumentar?
Analisemos os dados no nosso país. As primeiras eleições para eleger, na altura, 24 deputados de Portugal para o Parlamento Europeu realizaram-se no dia 19 de julho de 1987, uma vez que Portugal tinha entrado na CEE em 1986. É importante referir que estas eleições foram realizadas ao mesmo tempo que as eleições legislativas de 1987. Usando os dados oficiais disponíveis para esta e para as outras eleições congéneres realizadas em Portugal, construímos esta tabela:
Os dados de 2019 na tabela são referentes apenas ao território nacional, após terminada a contagem, com todas as 3 092 freguesias apuradas; excluímos os resultados dos inscritos e votantes no estrangeiro. A votação nos consulados portugueses espalhados pelo mundo é residual; em 2014 dos 243.382 cidadãos inscritos votaram 5066; em 2019, em 1.433.256 de inscritos houve 13.723 votantes (dados atuais), revelando a muito baixa motivação dos nossos compatriotas residentes no estrangeiro para eleger deputados para o Parlamento Europeu. Mas, no que diz respeito à participação dos residentes em território nacional, conclui-se que, apesar do número de inscritos nos cadernos eleitorais ter diminuído face a 2014, o número de votantes até aumentou ligeiramente em 2019.
Tirando as duas primeiras eleições (1987 e 1989) verifica-se que, a partir de 1994 até hoje, não existe nenhuma tendência marcadamente acentuada para aumento da taxa de abstenção. Em 2019, foi semelhante à de 1994. Desde 1994 que a taxa de abstenção nas eleições europeias realizadas em Portugal se situa no intervalo entre 60,07% e 65,34%.
O propalado aumento do número de votos inválidos (brancos e nulos) também não se demonstra claramente através da tabela apresentada. Neste período de 32 anos, compreendido entre 1987 até 2019, a percentagem de votos brancos e nulos oscilou no intervalo entre 1,10% e 2,59% em relação ao número de inscritos. Nas 3 últimas eleições (2009, 2014, 2019) a percentagem de votos inválidos situou-se acima dos 2% e foi muito constante, referente a um número de votos brancos e nulos que oscilou (pouco) entre 229.657 (em 2019) e 245.272 (em 2014). Irão dizer que em relação ao número de votantes os “brancos e nulos” atingem percentagens superiores às obtidas por alguns dos partidos concorrentes. É um facto, mas é importante que não escondamos as nossas deficiências democráticas por detrás das percentagens, nem nos deixemos manipular por “pós-verdades”.
Taxas de abstenção muito elevadas, superiores a 50%, são sempre indícios de sociedades “pós-democráticas” que caminham para o retrocesso da verdadeira liberdade e da verdadeira, sempre imperfeita e inacabada, Democracia: a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.