O SNS hoje e amanhã
O SNS está longe de vir a desaparecer, mas infelizmente encontra-se bem perto de uma crise grave, necessitando de atenção exigente e imediata.
A confiança dos cidadãos no SNS tem sido diariamente abalada por notícias negativas sobre greves e reclamações do pessoal, queixas sobre tempos de espera por consulta ou cirurgia, demoras e desconfortos nas urgências e por notícias, reais e ficcionadas, sobre carências de equipamentos, de pessoal, de condições de acolhimento e tratamento.
O setor privado cresceu imenso. Em dez anos, entre 2006 e 2016, o número de leitos privados subiu de um quarto para um terço dos leitos totais, enquanto os hospitais públicos reduziam em 13% a sua lotação, por encerramento de camas de psiquiatria, redução de internamentos pela cirurgia de ambulatório, alteração de práticas clínicas e aumento das altas de fim-de-semana. Nas consultas externas, o setor privado passou de um quinto para um terço do total do País. Nas urgências, em dez anos, duplicou a produção. No mesmo período, o setor público aumentou este último desempenho em apenas 28%.
Os maiores grupos privados abriram clínicas e hospitais em Lisboa, Porto, Coimbra e Algarve, avançando para o interior e Regiões Autónomas. Unidades de médio porte com internamento limitado, profusão de gabinetes de consulta, de diagnóstico e terapêutica e boas condições para cirurgia eletiva. Cerca de 27% de todas as cirurgias são hoje realizadas no setor privado. Dispõe, sobretudo, de condições hoteleiras superiores às do setor público. A ADSE, o subsistema de funcionários e pensionistas do Estado, faculta e garante-lhe regularmente um terço da receita.
Apesar da pressão da procura, o setor público não acompanhou o ritmo do privado. O investimento e o reequipamento foram dramaticamente restringidos. Ao longo de dez anos ocorreram muitas passagens à reforma de médicos, enfermeiros e técnicos superiores que haviam entrado para o SNS na década de setenta. Profissionais experientes passaram para o setor privado, outros reformaram-se antecipadamente e muitos jovens emigraram para países com retribuições compensadoras. A instabilidade orçamental dos hospitais públicos e o seu endividamento crónico têm deteriorado a qualidade da gestão, desmoralizado o pessoal, erodindo o prestígio do SNS.
Durante a crise, a contenção brutal na despesa pública foi conseguida por cortes no investimento, pela paragem de recrutamentos e promoções, reduções nas horas extraordinárias, reduções salariais e também por reduções na fatura farmacêutica, facilitadas pelo crescimento dos genéricos. A crise terminou, mas as restrições não cessaram. Apesar da admissão de quase cinco mil novos profissionais, as suas condições de trabalho e retribuição não acompanharam o acréscimo de recrutamento. A redução de horários na função pública, em vez de ter sido acompanhada de incentivos à produtividade, atuou como catalisador de ineficiências e de conflitualidade laboral. A deterioração do SNS impulsionou o privado a atrair clientes da classe média e alta que antes frequentavam o SNS. Deste modo, o SNS, em vez de refúgio para todos, passou a ser um serviço para os mais pobres e último recurso diferenciado para ricos e remediados quando os seguros caducam e os privados lhes conferem alta.
O SNS tornou-se um enorme e inesgotável armazém de recursos, porta aberta a todas as predações, impossibilitado de competir com um setor privado agressivamente inteligente, flexível, capaz de oferecer, em muitas áreas clínicas, cuidados de razoável qualidade e boa organização. O SNS corre o risco de se transformar numa caricatura do que pretendiam os seus fundadores, perdendo a reputação de “joia da democracia”.
Os defeitos do SNS não impedem, todavia, a sua elevada popularidade. Todos necessitam do SNS; os profissionais, mesmo os que de início se opuseram, são hoje seus defensores declarados, pois garante carreira e reforma. O setor privado tornou-se num seu acérrimo aliado: para fornecedores de bens e serviços o risco do pagamento tardio é suprido pela segurança do crédito; as convenções são escassamente controladas na qualidade e na faturação; os investidores privados não são limitados por regras de densidade e as que existem são ultrapassáveis. O pessoal treinado e com experiência abunda no SNS, desmotivado pelos baixos salários e ineficiente gestão. Atrair este pessoal para o setor privado é fácil e altamente vantajoso.
O SNS está longe de vir a desaparecer, mas infelizmente encontra-se bem perto de uma crise grave, necessitando de atenção exigente e imediata. Não haverá uma resposta única, sendo essencial considerar todos os recursos disponíveis, incluindo o setor privado. Poderá ter agora surgido a oportunidade para se planear a modernização necessária. Durante largos meses, o País investiu tempo e energia num interessante debate ideológico sobre as fronteiras da combinação público-privado. Mas pouco ou nada se avançou em temas como o investimento e o reequipamento, deixou-se cair a promessa de instalar meios de diagnóstico nos cuidados primários para aliviar o recurso à urgência, ainda não são visíveis resultados de estudos sobre a gestão intermédia de hospitais, com incentivos ao desempenho, não se recuperou a dedicação exclusiva, as Unidades de Saúde Familiares e os cuidados continuados avançam a passo de tartaruga.
A reforma do SNS parece apavorar as Finanças, mas nem sequer é dispendiosa se for bem planeada e melhor executada. É possível gastar melhor o que se tem, com financiamento regular, gestão planeada, descentralizada e flexível, responsável e inovadora, desde que se valorizem os recursos humanos de forma a eles recuperarem o brio de servir o SNS. Um controlo financeiro exigente não é incompatível com investimento bem dirigido, objetivos claros, regulação incisiva e permanente atenção aos cidadãos.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico