Quando o fisco abusa dos seus poderes
Há sempre maneiras mais civilizadas de fazer cobranças coercivas do que parar um condutor e confiscar-lhe a viatura em caso de incumprimento fiscal.
A operação da GNR e da Autoridade Tributária (AT) para apanhar numa operação stop cidadãos com dívidas ao fisco talvez estivesse condenada a uma banal breve nos jornais ou a um discreto rodapé nas televisões, se em causa não estivesse uma atitude prepotente que diz muito sobre o país. Na aparência, apanhar automobilistas devedores ao fisco e obrigá-los a pagar, sob pena de verem o seu automóvel penhorado pode parecer algo razoável e legalmente indiscutível. Mas não é nada disto por três simples razões: porque uma dívida ao fisco não quer dizer que o contribuinte seja sempre o culpado; porque o Estado que é tão complacente com as dívidas fiscais dos mais poderosos ao ponto de decretar a eito perdões e regularizações amigáveis não pode ser assim implacável perante um cidadão comum; e porque há sempre maneiras mais civilizadas de fazer cobranças coercivas do que parar um condutor e confiscar-lhe a viatura em caso de incumprimento fiscal.
O raide de ontem em Valongo não pode ser visto como um epifenómeno, porque exibe na sua concepção e execução uma carga simbólica que revela a ideia de poder imperial que o fisco tem sobre os súbditos contribuintes. Para o Estado, seja governo o PS ou o PSD, os cidadãos não passam de números com nove algarismos destinados a pagar a sua máquina. Mais do que um mecanismo de redistribuição e de justiça social, o fisco português assume a pose do xerife de Nothingham, mais preocupado com a extorsão do que com o cumprimento de deveres. A sua eficácia foi útil quando a troika aterrou na Portela e foi necessário aumentar receitas e continua a ser útil para manter a carga fiscal nos 35,4% do PIB. O contraste entre a sua obsessão em vigiar os cidadãos e a condescendência com as isenções fiscais a afortunados, os perdões fiscais, os os regimes excepcionais de regulação tributária e a zona franca da Madeira alimenta a sensação de que o país não é de todos por igual.
O Governo foi rápido em travar a operação, sugerindo falta de “proporcionalidade”. Mas ao final do dia ainda ninguém sabia quem a tinha ordenado. Percebe-se: na autoridade que inverte o ónus da prova, obrigando os contribuintes a provar a sua inocência, ninguém quer dar a cara por um raide fiscal com penhora imediata que é mais digno de um Estado autoritário do que de uma democracia. O episódio, porém, merece ser esclarecido. Um departamento do Estado que abusa dos seus poderes não pode remir os seus abusos numa confortável teia de silêncio.