Pintura inédita de Josefa de Óbidos vai a leilão na Alemanha

Obra de temática religiosa vai à praça com uma base de licitação de 25 mil euros. Era até aqui completamente desconhecida e mostra, uma vez mais, o talento da artista para trabalhar a pequena escala e a atenção que dedica aos detalhes dos ambientes femininos.

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A pintura de Josefa de Óbidos que será leiloada em Bona a 1 de Junho Cortesia: Leiloeira Plückbaum

A pintura é praticamente do tamanho de uma folha A4 e mostra a Virgem Maria com o Menino Jesus rodeados de mulheres e de crianças. Executada sobre uma placa de cobre, material familiar a Josefa de Óbidos, há nela muitos dos elementos que marcam a obra desta artista nascida em Sevilha que viveu e trabalhou sobretudo em Portugal. Estão lá, em pormenores delicados, as rendas e os bordados do universo feminino em que se sentia bem, estão lá os rostos suaves e rosados das figuras de cabelos muito trabalhados e ainda uma natureza-morta que tem nas maçãs e nas folhas de videira uma memória do paraíso.

Se não bastasse tudo isto para atestar da autoria da pintura que está prestes a ser leiloada na Alemanha, a assinatura sobre a coluna — Josefa 1667 — ajudaria a dissipar dúvidas.

“A Josefa está, claramente, nesta pintura que vem de uma certa tradição espanhola, sevilhana, com estes chapéus largos parecidos com os que eram usados na época pelos gitanos [ciganos]”, diz Joaquim Caetano, historiador de arte que foi um dos três comissários da última grande exposição dedicada à artista, Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em 2015. “Tem também uma mulher mais velha, ajoelhada, que parece estar a ler a sina ao Menino Jesus que, como a mãe, está sorumbático, certamente porque sabe o que lhe vai acontecer quando crescer. Há muita fortuna na pintura espanhola da época desta pré-figuração do destino de Cristo. Pelo tamanho de Jesus, diria que este é um momento de descanso na fuga para o Egipto, mas sem São José.”

Além destes elementos, Joaquim Caetano, conservador de pintura e, a partir de Junho, director do museu, chama a atenção para “a fantástica natureza morta”, para as “mulheres e crianças de boca pequenina”, uma das características da produção de Josefa, e para a diferença dos tons de pele das figuras: “O Menino Jesus e a Virgem têm a pele mais clara do que todos os outros. As outras crianças também são mais brancas do que as três mulheres… Nada disto é por acaso. Josefa é extremamente cuidadosa no tratamento destes detalhes.”

Caetano garante que a pequena pintura que a leiloeira Plückbaum vai levar à praça a 1 de Junho, em Bona, era até aqui desconhecida. “É totalmente inédita. Há algumas Josefas que desapareceram, mas de que há imagens, neste caso não havia nada.”

Um sucesso comercial

Brigitte Plückbaum-Burgardt, proprietária desta leiloeira que tem já 90 anos, não conhecia a obra de Josefa de Óbidos até ter de lidar com esta pintura cujo percurso é até agora uma incógnita. No catálogo do leilão de 31 de Maio e 1 de Junho diz-se apenas que pertenceu a uma colecção privada alemã e que terá sido adquirida, “provavelmente”, na década de 1980.

“A obra é muito interessante porque o trabalho desta artista aparece raras vezes no mercado”, diz ao PÚBLICO Brigitte Plückbaum-Burgardt, sublinhando que são muito poucas, aliás, as pinturas portuguesas à venda nas casas de leilões alemãs. “Muito interessante”, também, “porque era até aqui desconhecida e porque é uma combinação muito boa de um tema religioso com uma natureza-morta de grande qualidade”.

No mercado português, pinturas como esta sobre cobre, em que se tornam evidentes a experiência e o talento de Josefa de Óbidos para trabalhar na pequena escala, são muito procuradas. Já na época da pintora, que viveu entre 1630 e 1684, eram muito apreciadas, lembra Joaquim Caetano. O conservador de pintura acredita, aliás, que esta artista que aprendeu o ofício com o pai — o pintor Baltazar Gomes Figueira, em cuja oficina trabalhou inicialmente —, que recebeu uma educação conventual em Coimbra e que a partir de 1646 se radicou em Óbidos, nunca deixou de trabalhar este material. Nem mesmo quando se estabeleceu por conta própria, passou a receber encomendas para retábulos (a partir do da Igreja de Santa Maria, em Óbidos, obra de 1661) e a ser senhora do seu próprio património.

Estas pinturas pequenas sobre cobre eram um sucesso comercial, assim como as naturezas-mortas, género em que a sua obra é muitas vezes confundida com a do pai. Josefa terá feito obras assim durante toda a sua vida, mas sobretudo no começo. E a prática fez dela uma miniaturista muito boa.” Destinavam-se a uma devoção na intimidade, no espaço doméstico, e eram muito procuradas porque podiam ser facilmente exportadas ou aplicadas em mobiliário.

Josefa entre as mulheres

Nesta pintura que agora vai a leilão com uma base de licitação de 25 mil euros, entre obras de Marc Chagall ou Pieter Coecke van Aelst, porcelanas de Meissen e tapeçarias orientais do século XVI, a Virgem e o Menino têm por companhia, segundo Caetano, outras mulheres da família — Isabel, mãe de São João Baptista, a criança que está junto a ela enquanto a prima de Maria lê a sina a Jesus, Maria de Cleofas e Maria Salomé. “Este ambiente feminino é o que ela conhece melhor, onde se sente melhor. Tecidos, rendas, crianças e mulheres com um brilho no rosto. As mulheres na obra de Josefa são sempre figuras mais interessantes do que os homens, que tendem para uma simplificação, para um embonecamento. Mas esta atenção especial aos ambientes femininos não a diminui — Josefa não deixa de ser, no contexto português, um dos melhores pintores.”

Com um estilo próprio, Josefa de Óbidos cria em cobre “obras preciosíssimas”, mesmo quando as dimensões, como no caso da que está exposta no Museu do Louvre, em Paris, ou da que foi comprada pela Misericórdia do Porto, são maiores do que as da que agora vai a leilão. “Ela trabalha o cobre muito bem. Consegue uma grande delicadeza de contorno e a pintura fica luminosa.”

Tanto a do Louvre como a do Museu da Misericórdia do Porto foram adquiridas em leilões em Nova Iorque: a primeira, A Penitente Madalena Consolada por Anjos, foi comprada em 2015 por iniciativa de um antiquário de Paris com ascendência portuguesa, Philippe Mendes, e custou 236 mil euros; a segunda, A Sagrada Família com São João Baptista, Santa Isabel e Anjos, foi arrematada no ano seguinte por 228 mil (ambas tinham bases de licitação de cerca de 180 mil euros).

O MNAA tem 15 obras de Josefa de Óbidos no seu acervo. Entre elas estão um Menino Jesus Salvador do Mundo, uma Adoração dos Pastores e um Casamento Místico de Santa Catarina que pertenceu ao rei D. Luís.

O PÚBLICO não conseguiu apurar se a Direcção-Geral do Património Cultural, entidade que tutela o Museu de Arte Antiga, vai tentar comprar esta pintura no leilão de Bona.

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