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Pelechian, odisseia na Cinemateca

Cineasta dos cineastas, figura conhecida apenas de poucos mas que influenciou nomes como Godard ou Malick, o arménio Artavazd Pelechian está esta semana em Lisboa para apresentar na Cinemateca Portuguesa uma retrospectiva de uma obra curta mas que marcou todos os que a viram.

Foto
Artavazd Pelechian DR

Citar o nome de Artavazd Pelechian em público num festival de cinema ou numa cinemateca levará a uma de duas respostas: primeira, o desconhecimento total do interlocutor, a quem o nome do cineasta arménio nada diz; segunda, o assentamento sorridente e apaixonado de quem foi exposto à obra de Peleshian e faz parte dos “iniciados” que compõem um dos cultos mais bem guardados do cinema moderno.

Não somos nós quem o diz, é o crítico e académico Daniel Fairfax na introdução que fez em 2012 ao cinema de Artavazd Pelechian na revista online Senses of Cinema, mas é difícil não concordar com ele. Verdadeiramente “descoberto” no ocidente na década de 1980 graças aos esforços do crítico e programador francês Serge Daney, Pelechian é a partir de hoje alvo de retrospectiva (praticamente) integral na Cinemateca Portuguesa, em sua presença e com direito a um encontro com o cineasta na tarde de quarta (18h30). Uma oportunidade tanto mais rara quanto Pelechian é uma personagem esquiva, reclusa. A sua curta obra não existe em DVD (apesar de, em 2002, ter havido uma edição portuguesa hoje esgotada), e só nos últimos 20 anos tem circulado mais regularmente pelos circuitos de festivais e cinematecas (o LEFFEST fez uma sessão em 2012) e também a aparecer, em versões de qualidade desigual, em plataformas online como o YouTube.

Uma lógica de contraponto

Portugal descobriu Pelechian ainda em película, na segunda edição do Curtas Vila do Conde, em 1994, também com a presença do realizador e numa retrospectiva cujo programa era praticamente idêntico ao que a Cinemateca agora nos propõe. Por uma razão muito simples: numa carreira formalmente iniciada em 1964, Pelechian (n. 1938), contemporâneo de Tarkovski, Mikhalkov, Konchalovsky (com quem colaborou nas montagens de arquivo de Siberíada) ou Khutsiev, mas sempre personagem à parte no cinema soviético, nunca chegou a filmar uma longa-metragem (embora tenham existido projectos) e assinou apenas nove curtas, a última das quais em 1993. “Deserdou” as duas primeiras (Patrulha de Montanha, de 1964, e Terra do Povo, de 1966) como filmes escolares onde não reconhece ainda a sua personalidade, reduzindo assim a sua obra “oficial” às sete curtas dirigidas entre 1967 e 1993.

A duração total destes sete filmes ultrapassa em pouco as duas horas, e todos eles serão exibidos na Cinemateca, em duas sessões. Na primeira (segunda 26 às 21h30 e quinta 30 às 18h30) mostrar-se-ão O Início (1967), Nós (1969) e As Estações (1972); na segunda (terça 28 às 19h e sexta 31 às 18h30) Os Habitantes (1970), O Nosso Século (1982), Fim (1992) e Vida (1993). Em todos eles se reconhece a “marca registada” de Pelechian, cineasta igualmente teórico – a técnica que definiu como “montagem à distância”, que poderia ser o “passo seguinte” dos legados de Dziga Vertov ou Sergei Eisenstein, afastando-se da ideia sequencial de uma montagem de causa-e-efeito linear para procurar um ideal de circularidade, sublinhado por efeitos de velocidade ou repetição de planos. Ou seja, uma montagem onde os motivos visuais são trabalhados numa lógica de contraponto e fazem parte de um todo circular que apenas fará sentido uma vez o quadro completo.

No entanto, como o próprio Pelechian disse em entrevistas, ver os seus filmes apenas segundo a lógica da montagem seria um erro – o que lhe interessa é, antes, construir um “campo emocional” que comova o espectador, um resultado superior à simples soma dos vários elementos. Algo que atinge o seu ponto máximo na viagem pelo “século da aeronáutica” O Nosso Século, espécie de Odisseia no Espaço que deixa para trás Kubrick e Tarkovski para devolver a dimensão humana à ambição da libertação da gravidade (será exibido na Cinemateca na “versão definitiva” que Pelechian remontou em 1990, reduzindo o filme de 50 minutos originais para 30).

Chega a ser alucinante perceber o simples trabalho de pesquisa de materiais de arquivo envolvido neste e noutros filmes de Pelechian (começando com O Início, encomendado para marcar os 50 anos da Revolução Russa), cruzadas com material rodado especificamente pelo realizador na sua Arménia natal. Veja-se o olhar sobre os ritmos da pastorícia rural em As Estações, a primeira e mais pura manifestação da “montagem à distância”, com qualquer coisa de western oriental, rude e telúrico.

Lirismo transcendental

Os sete filmes a exibir pela Cinemateca – acompanhados pelo recente documentário de Vincent Sorrel Le Cinéaste est un cosmonaute, a exibir quinta 30 às 21h30 – exploram uma ideia de lirismo transcendental, de contraste e coexistência entre o universo natural e o humano, miscelânea do poético e do político que vemos como influência recorrente em toda uma série de cineastas contemporâneos. Podem ser a geração de documentaristas e experimentalistas italianos que inclui Michelangelo Frammartino ou Pietro Marcello (que dedicou a Pelechian um documentário em 2011, Il Silenzio di Pelesjan) ou realizadores mais visíveis como Terrence Malick (cuja obra a partir de A Barreira Invisível faz pensar se o americano não será um discípulo devoto do cineasta arménio).

Mas talvez não exista maior recomendação do que a devoção de Jean-Luc Godard, que se encontrou longamente com Pelechian em 1992 e 1993 e retirou desses encontros ensinamentos que aplicou em toda a sua obra ensaística posterior. Podemos sonhar com o que teria sido o encontro cinematográfico entre os dois – que chegou a ser falado – mas esta semana vamos poder descobrir na Cinemateca o porquê da devoção de Godard a Artavazd Pelechian.

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