Rush, o filme que ajudou a definir Niki Lauda na sua rivalidade com James Hunt
Niki Lauda, que morreu aos 70 anos, tem no filme de Ron Howard e Peter Morgan o seu close-up na cultura popular. “Mozart versus Salieri. Kennedy versus Khrushchev. Gates versus Jobs” - e Rush para aplicar essa lente à Fórmula 1.
O elenco do filme Rush – Duelo de Rivais é, adequadamente, um reflexo das suas personagens – Chris Hemsworth como James Hunt, o galã loiro “larger than life”, e Daniel Brühl como Niki Lauda, profissional discreto e meticuloso. Um filme que, sendo sobre uma dupla, acaba em parte por definir para o grande público quem foi o introvertido Niki Lauda, o piloto austríaco que morreu segunda-feira, aos 70 anos, e que colaborou de perto com o argumentista Peter Morgan (A Rainha, The Crown) e o realizador Ron Howard (Uma Mente Brilhante, Forrest Gump) de Rush.
Foi Peter Morgan que desencadeou Rush (2013), contactando Niki Lauda, que decidiu aceitar a proposta depois de ter recusado outras para contar a sua história. Achava-as entediantes. Aceitou colaborar com Howard e Morgan e o resultado foi o que especialistas no desporto automóvel como Brad Spurgeon consideram “seguramente o melhor filme alguma vez feito sobre Fórmula 1” e que figura nas listas que envolvem o clássico de 1966 Grand Prix ou o documentário Senna (2010). Morgan e Howard já tinham trabalhado juntos em Frost/Nixon e abalançavam-se para fazer um filme sobre outras duas personalidades em choque.
O filme centra-se na rivalidade entre os dois pilotos e na temporada de 1976. Lauda estava à frente no campeonato, depois de cinco vitórias, quando, no circuito de Nürburgring, na Alemanha, sofreu um grave acidente no seu Ferrari, que colidiu com uma barreira. O carro incendiou-se e quase o matou: deixou a cabeça e o rosto parcialmente queimados, os pulmões danificados. Ficou em coma, sem uma pálpebra e metade de uma orelha.
“Ninguém sabia verdadeiramente aquilo por que eu estava a passar. Eu sabia. E era só”, disse ao New York Times sobre o poder de Rush ao transmitir a intimidade de um momento charneira na sua carreira e na história daquele desporto que a dupla de pilotos ajudou a popularizar. “De repente, toda a gente chega ao pé de mim, jovens e velhos, e diz ‘Nunca imaginei o que você passou’.” O filme ajudou-o a perceber a gravidade do acidente, que foi apagando da sua memória.
Rush tem essa particularidade de associar à filmagem acelerada das sequências de corrida, num estilo embebido tanto pelo documentário Senna quanto por Talladega Nights ou Gimme Shelter, as octanas da personalidade de cada um dos seus protagonistas.
“Um dos prazeres de profundidade crescente do filme é como, à medida que a história alterna astuciosamente entre um homem e o outro, ele descasca a arrogância que envolve Lauda, que é tão abrasivo que é difícil não torcer contra ele, mesmo quando a actuação texturizada e destra de Brühl nos atrai”, escrevia na altura a crítica do New York Times Manohla Dargis. Na Variety, em 2013, o crítico Peter Debruge lembrava como a rivalidade simbiótica entre ambos era como outras grandes tensões da cultura ao longo dos séculos – “Mozart versus Salieri. Kennedy versus Khrushchev. Gates versus Jobs”.
O filme retrata o impacto do acidente no seu regresso à profissão e a perda do título de campeão de Fórmula 1 depois de se ter retirado da prova decisiva, por motivos de segurança, que daria o campeonato a Hunt. “Peter explicou-o de forma muito simples: tinha de escrever o filme em que duas personalidades se enfrentam e no final há dois vencedores. Não há um vencedor e um derrotado, há dois vencedores. E essa foi mesmo a realidade. Porque com James a luta era difícil”, disse na mesma entrevista ao diário nova-iorquino, numa altura em que já tinha visto Rush três vezes. O filme, ainda assim, coíbe-se de mostrar muito da amizade que unia Hunt e Lauda. “James era diferente”, disse ao diário britânico Telegraph sobre a sua proximidade. “Se ele tivesse sido um bocadinho menos bom, eu tinha ganho o campeonato à mesma. Mas ele era um chato do caraças”, disse Lauda em 2013 ao New York Times.
O piloto britânico também era directo. “Hunt costumava dizer-me: ‘Tens sorte, Niki. Algumas pessoas nascem feias, tu tens a desculpa de ter tido um acidente’”. James Hunt morreu de enfarte aos 45 anos em 1993 e não há texto sobre ele que não enfatize o seu lado hedonista, mulherengo e o seu aspecto, tal como muitos artigos sobre Rush não conseguem resistir a equiparar a aparência de Niki Lauda, ainda que no corpo do actor alemão nascido em Espanha, a algum tipo de roedor. Nos mesmos artigos, a sua personalidade vista pelos autores destaca-se. Lauda conhecia Morgan porque cortejou a mulher do argumentista muitos anos antes, e a sua realização firmou-se ao longo de dezenas de jantares em Viena, na Áustria, sempre no mesmo restaurante porque o ex-piloto podia lá comer sem pagar, contou Morgan ao New York Times. Era um homem rigoroso e poupado.
Lauda aprovou o casting de Daniel Brühl, vindo de Sacanas sem Lei ou Adeus Lenine! para contracenar com um australiano que o mundo conhece como a versão cinematográfica do super-herói e deus Thor – “Acho que fez um trabalho extraordinário a interpretar-me, porque quando o vi, e toda a gente diz o mesmo, achamos todos que era eu”, disse o antigo piloto ao New York Times em 2013. Daniel Brühl recebeu um telefonema de Lauda, pouco depois de saber que tinha ficado com o papel. “Ele disse: ‘OK, vem a Viena. Traz só bagagem de mão, assim se não gostarmos um do outro podes desaparecer’. Foi espectacular”, contou o actor ao diário britânico The Guardian em 2013.
O próprio Niki Lauda também aparece no filme, nos momentos finais. Sendo um piloto respeitado, não foi, como o seu colega Ayrton Senna, por exemplo, alvo de filmes, documentários, livros e títulos plurais na BD. Há referências a Lauda na série de animação japonesa Arrow Emblem: Hawk of the Grand Prix (1977-78) e várias aparições do piloto na BD de culto Michel Vaillant entre 1974 e 1986. É também entrevistado num programa sobre desastres aéreos, por causa do acidente com o avião da Lauda Air, a sua companhia aérea, em 1991, mas na cultura de massas é essencialmente Rush que o representa.