Provedoria da Justiça tece críticas a diplomas da comissão para a transparência
Deveres das entidades públicas no lobbying, criação da Entidade da Transparência e restrições no acesso dos cidadãos às declarações de políticos e titulares de cargos públicos merecem reservas.
Há aspectos positivos, mas também várias críticas no parecer da Provedoria de Justiça sobre os projectos de diploma da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas. No documento, no qual se aponta o dedo à ausência de sanções quando os incumprimentos são praticados pelas entidades públicas, em matéria de lobbying, são também assinaladas reservas quanto à criação de uma Entidade da Transparência e, ainda, em relação ao regime demasiado “restritivo” de acesso às declarações de políticos e altos cargos públicos por parte do público em geral.
No que respeita ao lobbying – ao projecto de diploma sobre as regras de transparência para entidades privadas que representam interesses junto de entidades públicas e que visa criar um registo de transparência da representação de interesses junto da Assembleia da República –, o parecer assinado pelo adjunto da provedora de Justiça nota que, se o projecto tem como objectivo a “transparência no exercício de funções públicas, dele está, estranhamente, ausente a disciplina legal relativa às entidades públicas”.
Em vez de se centrar só nas obrigações das entidades privadas, a Provedoria de Justiça coloca o enfoque também nos “deveres precisos” das entidades públicas, acusando o projecto de não estabelecer qualquer “regime que sancione o seu incumprimento”: “Aliás, o próprio incumprimento da obrigação de criação, pelas entidades públicas abrangidas, de um registo próprio, no prazo de um ano, fica por sancionar”, lê-se.
Ora, o entendimento do gabinete de Maria Lúcia Amaral é o de que, desta forma, o projecto fica aquém dos objectivos: “Se é verdade que o enfoque do projecto legislativo é o de estabelecer regras de transparência aplicáveis à actividade de representação legítima de interesses exercida por entidades privadas, é, no entanto, preciso ter presente que a promoção da transparência é primacialmente dirigida a quem exerce funções públicas.” O parecer conclui, então, que o projecto pode “ser aperfeiçoado no que respeita à disciplina legal” relativa às entidades públicas.
Já no que se refere ao regime do exercício de funções pelos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, que inclui regras para a entrega de declarações de rendimentos e património, o parecer tece mais críticas. No documento enviado ao presidente da comissão em causa, Marques Guedes, pode ler-se, por exemplo, que “o projecto não prevê nenhuma sanção para os casos de atrasos desrazoáveis na entrega de declarações ou na não resposta ou resposta deficiente" a um “aperfeiçoamento ou esclarecimento” da declaração entregue.
Ora, desenvolve o parecer, “em ordem a assegurar que a declaração é efectivamente apresentada e que a mesma não contém omissões relevantes, deveria a lei estabelecer o mecanismo da sanção pecuniária compulsória”.
"Sobrecarregar” o Constitucional
As chamadas de atenção não se ficam por aqui. Sobre o facto de o projecto prever “um sistema de controlo integrado na Entidade Fiscalizadora da Transparência, órgão independente que funcionaria junto do Tribunal Constitucional”, considera a Provedoria de Justiça que “é de evitar sobrecarregar ainda mais” aquele tribunal, “numa área que é estranha àquilo que, nos termos da Constituição”, lhe compete.
Além desta “objecção de fundo”, critica-se ainda o projecto por “nada” estabelecer “sobre a composição e funcionamento” daquele órgão. O parecer defende que esse “desenho institucional” não é irrelevante, sendo antes “essencial” para se avaliar a “eficácia do sistema de controlo”. A Provedoria não está portanto esclarecida, nem convencida, sobre a criação daquela entidade: “Face à falta de informação existente, a sua criação só pode merecer-nos as maiores reservas.”
A estas reservas juntam-se outras: “A criação de uma entidade de raiz tem o inconveniente de desperdiçar o conhecimento e a experiência acumulada ao longo de anos pelo Ministério Público no Tribunal Constitucional que, com meios limitados, tem conseguido exercer a função de fiscalização”, lê-se no documento no qual se acrescenta ainda que “a análise e fiscalização das declarações por parte da Entidade da Transparência limitar-se-ia” a “um controlo estritamente formal do preenchimento da declaração, não dispondo uma entidade de natureza administrativa de meios legais e operacionais para efectuar um controlo efectivo sobre o que é declarado e a realidade”.
Como exemplo, o parecer salienta que, “numa situação de incongruência entre os rendimentos declarados e o património existente, o projecto não contém nenhuma indicação de como deveria a entidade actuar em termos de comprovar a veracidade da informação constante da declaração”.
Por tudo isto, a Provedoria entende que “teria sido preferível optar-se por manter o sistema actual, dotando o Ministério Público no Tribunal Constitucional de meios humanos e orçamentais” para “exercer a função de fiscalização”.
Há ainda outro ponto “particularmente merecedor de crítica” – o regime “excessivamente restritivo” de acesso às declarações daqueles titulares pelo público em geral que tem “demasiadas regras e procedimentos perfeitamente dispensáveis”.
“Se o objectivo do legislador é o de reforçar a transparência no exercício de funções públicas, e sendo o valor da transparência um fim em si mesmo, não tem qualquer sentido fazer depender a consulta da declaração de finalidades legais”, lê-se, acrescentando-se que também é “incompatível” com o valor da transparência, tornado “opaca" a declaração, que a informação para consulta se limite apenas ao número de bens que os titulares possuem, deixando de fora outros dados sobre aqueles mesmos bens.
Partindo do princípio que, “independentemente do acesso à declaração para efeitos de fiscalização, uma verdadeira cultura de transparência exige que se garanta a acessibilidade pelo público em geral”, a Provedoria propõe que “tudo isto” seja “evitado”, através da “possibilidade de diferentes níveis de acesso à declaração”, o que significaria, por exemplo, que o público geral teria acesso livre às declarações, mas não a moradas, matrículas de carros, números de contas bancárias ou outros dados considerados pessoais.