“Matamos a torre, matamos espaço público”? Está aberto o debate sobre “torre” da Portugália

Moradores queixaram-se que o prédio com 16 andares previsto para um quarteirão da Avenida Almirante Reis, em Lisboa, vai fazer sombra para as construções vizinhas. Mas os arquitectos contra-argumentaram com a criação de espaço público e mais estacionamento. “O nosso interesse é a cidade”, referiram os arquitectos.

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Numa coisa, todos acabaram por concordar: como está, devoluto e abandonado, o quarteirão da antiga fábrica de cervejas Portugália, em Lisboa, não pode continuar. No entanto, muitos não acreditam que a solução encontrada pelos arquitectos José Mateus e Nuno Mateus (do gabinete ARX) para aquela área, que entre outras construções contempla um prédio com 16 andares e 60 metros de altura, seja a mais adequada. Entre os argumentos mais utilizados por quem não quer que se erga aquela “torre” está a descaracterização de uma zona com a implantação de um prédio com uma volumetria muito superior aos existentes; a sombra que causará para a Avenida Almirante Reis e para prédios vizinhos ou o impacto que terá nas vistas dos miradouros da Penha de França, do Monte Agudo ou do futuro jardim do Caracol da Penha. Esta quinta-feira, foi o primeiro debate entre os autores do projecto do quarteirão da Portugália e dos munícipes que contra ele estão que, perante o lotado auditório da Ordem dos Arquitectos, tiveram de enfrentar as críticas - mas também elogios -, sobretudo por parte de colegas arquitectos.

O que ali se quis, começou por explicar José Gil, da Essentia, empresa que coordena a obra, cujo promotor é o Fundo Sete Colinas, gerido e representado por Silvip – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, foi “recuperar a história da Almirante Reis”, “diversificar usos”, “promover o arrendamento habitacional” e “gerar oferta habitacional para jovens e classe média em Lisboa”. Por isso, elencou, haverá um conjunto de apartamentos – 9500 m2 para venda – que “está claramente orientado para o mercado nacional de classe média”, sem contudo referir quanto custarão estas casas.

O responsável da Essentia explicou ainda que 10500 m2 vão integrar um programa de co-living, isto é, um programa que visa integrar, por exemplo “um sénior, um jovem que vem estudar para Lisboa, um estrangeiro que possa vir trabalhar para a cidade”, promovendo assim o “intercâmbio cultural e intergeracional”. E que ficará inserido “no objecto de polémica”.

No segundo piso da fábrica, que será recuperada, funcionará um espaço de co-working. O projecto contempla ainda dois pisos de estacionamento público e um de carácter privado. A intervenção vai estender-se, numa segunda fase, ao edifício Planasa onde surgirá um equipamento público.

“É um edificiozinho de 16 andares”

Antecipando já algumas das críticas, José Mateus, começou logo por alertar que os quarteirões vizinhos ao da Portugália estão “densamente construídos”. O da frente, por exemplo, tem edifícios com nove andares que “projectam uma sombra cruel em todo o seu desenvolvimento” pela Almirante Reis. “A torre é um edifício partido em dois. A base do edifício acompanha a altura dos edifícios vizinhos. Depois, há um novo corpo, mais elegante”, que atingirá os 60 metros, e será revestido a aço e vidro, explicou.

Além disso, para os arquitectos, os espaços de uso público que querem criar no quarteirão permitirão “desdensificar” a construção. “Entre o Intendente e a Alameda existe alguma praça pública? São dois quilómetros de avenida sem espaços públicos”, notou José Mateus, argumentando que a construção em altura permitirá dar à população uma zona de fruição, “um espaço público em dois quilómetros de avenida”.

A explicação acabaria por não ser suficiente para os presentes. “O que me choca é o incentivo à densificação das zonas consolidadas porque acho que as descaracteriza. Nada tenho contra as torres”, notou José Silva Carvalho. Para este arquitecto, o que se propõe para a Portugália é “tremendamente obsessivo”: “a torre não deveria ser tão pronunciada”, disse, sobretudo porque a largura da Almirante Reis “é tremendamente acanhada para um prédio desta volumetria”.

“As pessoas viram uma imagem e, de repente, falou-se numa torre. É como arrancar uma página de um livro”, respondeu José Mateus, salientando que é preciso olhar para o projecto como um todo. “O que está aqui em causa são questões urbanas com interesse para todos”.

Já José Miguel Fonseca, também arquitecto e urbanista, lembrou que o projecto, a ser concretizado, abrirá “um precedente” em que os promotores de futuros empreendimentos se sentirão no direito de querer construir prédios semelhantes àquele. “Que cidade queremos daqui a 50 anos?”, questionou José Miguel Fonseca.

Mas para lá das críticas, apareceu também quem elogiasse a proposta do atelier ARX. “Este projecto revela uma ambição que não se via há muitos anos”, apontou um munícipe. “O que é uma torre de 16 andares? É um edificiozinho de 16 andares”, disse, salientando que o estacionamento previsto “permitirá desafogar o estacionamento no centro da cidade” e que haverá um “troço do espaço privado devolvido às pessoas sem que isso represente um peso para a cidade”.

“Erro histórico”

Na quarta-feira foi lançado um movimento de cidadãos que está contra a construção do edifício de 60 metros. Para o Movimento Stop Torre 60m Portugália — assim se chama este movimento cívico —, a “torre projectada descaracteriza e fere a identidade arquitectónica dos bairros envolventes”, uma vez que apresenta “uma volumetria muito superior à existente” nesta parte da cidade.

Presente na sessão, Rita Cruz, que deu a cara pelo movimento, disse mesmo que este é “um erro histórico”. “A nós que moramos ali, não nos parece nada elegante”, atirou, lamentando ainda que a população não tenha sido antes ouvida neste processo. 

“Encanta-nos cidadãos profundamente envolvidos. Aquilo que não apreciamos é população amorfa”, respondeu-lhe José Mateus. “O que foi dado em troca da torre foi espaço público, vazio, e esse espaço é um espaço que tem sido reivindicado pela população”.

“Porque é que vai construir uma torre em frente ao miradouro do [futuro] Jardim do Caracol da Penha?”, retorquiu Rita Cruz. Se planear cidade é sempre “um jogo de equilíbrios”, para José Mateus, o impacto que a futura construção possa vir a ter desses pontos altos da colina parece “bem equilibrado”. 

“A torre não é um elemento isolado. Relaciona-se com toda a Almirante Reis”, respondeu José Mateus. “As cidades mantêm para além da coerência, diversidade. A paisagem onde o jardim se situa é muito mais interessante com esta opção”, atirou o arquitecto.

Ana Roxo, arquitecta, saiu em defesa do projecto, dizendo que é altura de acabar com os “fantasmas da torre da Portugália”. “Em vez de se falar do projecto do quarteirão estamos a falar da torre da Portugália”. O mesmo lembrou a arquitecta Margarida Grácio Nunes: “não posso chamar de maneira nenhuma a este edifício uma torre”, admitindo que a obra “não será tão insólita como algumas fotomontagens que tem povoado o Facebook por estes dias”.

As críticas mais acutilantes acabariam partir de Vítor Reis, arquitecto que já foi vereador em Lisboa e que hoje é presidente da Mesa da Concelhia do PSD, que considerou que esta opção “destrói a morfologia do bairro da Almirante Reis”: “O que se está fazer na Portugália é um prédio Coutinho”, criticou, lembrando prédio de Viana do Castelo.

Sobre se com um prédio deste e de outros do género que venham a surgir não acabam por destruir as colinas de Lisboa, Nuno Mateus referiu que os “edifícios de excepção” acabam por ajudar na localização: “É o que nos faz reconhecer que ali é o Bairro Alto, que ali é a Estrela”. E insistiu no espaço que a cidade pode ganhar com a construção em altura: “Matamos a torre, matamos espaço público”.

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Também presente no debate, Filipa Roseta, arquitecta e vereadora com a pasta do Urbanismo em Cascais, mas que ali se apresentou como investigadora da história e evolução das avenidas, sugeriu que a Almirante Reis, a “parente pobre” das grandes avenidas, tivesse um espaço de usufruto público que fosse “lateral” como o do jardim junto à igreja dos Anjos. “Há aqui uma proporção que tem de ser recalculada”, reforçou.

As críticas estenderam-se ainda ao facto de a câmara de Lisboa não estar também ali, na frente de todos, a debater o projecto. Presentes estiveram apenas os vereadores do PSD, João Pedro Costa e Teresa Leal Coelho. No final, o director do Departamento de Projectos Estruturantes da autarquia, Eduardo Campelo, lembrou que para a semana haverá mais um debate público em Arroios (terça-feira, às 18h30 no Mercado Forno do Tijolo) e sublinhou que o projecto terá ainda de ser apreciado e aprovado pelo executivo municipal.

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