O torreão que nasceu porque um rei queria viver perto do rio
O edifício, que vai entrar em obras em Outubro, vai receber uma última exposição sobre a sua própria história, com cinco séculos. Caiu e renasceu duas vezes, ninguém quis desistir dele. Nem sequer os espanhóis.
O Terreiro do Paço (actual Praça do Comércio) deve-se à vontade de D. Manuel I ver o rio mais perto, mas mantém-se até hoje como um dos mais importantes pontos da cidade e do país. O Torreão Poente foi o primeiro a nascer e, até hoje, já ressurgiu duas vezes. A memória de um torreão que teimou em sobreviver às vicissitudes da história de Lisboa é feita de fotos, gravuras e objectos, agora expostos por várias salas deste guardião de pedra de uma das belas praças do país.
O edifício, que é hoje um dos cinco pólos do Museu de Lisboa (ML), vai entrar em obras em Outubro deste ano e abre a exposição – a última antes da intervenção – já no dia 17.
A sua história é contada por cada sala: começou cedo, com D. Manuel I a querer fugir do Castelo para mais perto do Tejo. Nasce assim o Terreiro do Paço, a grande praça junto ao rio onde, durante séculos, habitou a realeza portuguesa.
Com a realeza fora do Castelo de S. Jorge, em 1511, era preciso fazer erguer junto ao Tejo um Paço real capaz de receber toda a alma manuelina. Consigo veio o Torreão Poente, que surge da vontade, inicialmente inexistente, de conceder à habitação real alguma estrutura militar defensiva (característica dos antigos castelos).
Num tempo em que as armas de fogo começavam a ser introduzidas, ergue-se sobre o rio aquilo que defenderia, por apenas quatro anos, o Paço da Ribeira. Cedo passou a integrar o espaço doméstico, perdendo as qualidades militares.
A primeira vida do Torreão acabou no abandono, até hoje por razões desconhecidas, e no eventual desmoronamento. Nas pinturas expostas, que vão documentando o passar dos séculos, nota-se o gradual desaparecimento do edifício. Reergueu-se a seguir, por mãos espanholas, fruto da memória portuguesa que D. Filipe I quis manter viva. Reconstruído à imagem do torreão manuelino, o agora torreão filipino voltou a cair quase um século depois – no terramoto de 1755. As divisões encadeiam-se entre si e permitem, a passo lento, percorrer toda a história do edifício - literalmente.
Foi no século XVIII que a corte abandonou o Paço da Ribeira. Após o terramoto, D. José I mudou a realeza para a Ajuda, longe do mar. Na nova lógica da cidade pombalina não há reis no Paço e este passa a ser ocupado por ministérios. Reconstruído à luz das visões arquitectónicas mais iluministas, que privilegia a simetria, surge do outro lado da praça – a nascente – um novo torreão.
Vive até hoje, sem mais alterações, recebendo este ano as primeiras intervenções de maior dimensão desde a sua terceira construção. Manter-se-á intacto por fora, com as mesmas características pombalinas que tentava enfrentar novos tremores de terra, mas as alterações internas foram muitas e são as últimas salas que a contam.
Ao chegar ao século XX, entra-se agora num Torreão tomado pelo Estado Novo. Com gabinetes para os vários ministros, foi aqui que António de Oliveira Salazar estabeleceu o seu governo e foi ao virar da sua esquina que se sentiu a força da revolução de 25 de Abril (quando as colunas de Santarém chegaram à Praça para deter os ministros). A estrutura e configuração mais apta para o tipo de trabalhos que Salazar queria desempenhar ali exigiram novas salas e novas paredes, construídas com um carácter mais militar e frio, distinto de toda a estrutura arquitectónica do edifício.
Do passado ao futuro: o que se vai passar no Torreão Poente?
A última sala conta a história do que ainda não aconteceu. Com uma maquete do edifício e com vista para o seu interior, é possível perceber todas as alterações previstas. Actualmente dedicado a exposições temporárias, o espaço transformado vai manter o mesmo propósito. Será maior e mais amplo, para permitir que mais exposições sejam acolhidas e até que sejam cedidas salas a instituições externas ao Museu de Lisboa. A ideia passa por transformar o Torreão Poente num ponto constante de exposição que complemente o espaço de exposições permanente no Campo Grande, esperando-se um restauro desde os alicerces até à cobertura do edifício.
Aberto a tempo inteiro, vai receber exposições temporárias e também abrir espaço para serviços educativos. A ideia é devolver ao edifício “a dignidade e a beleza” que tanto ele como a totalidade da praça merecem, segundo a directora do Museu de Lisboa, Joana Sousa Monteiro. Para a museóloga, o Torreão é uma parte fundamental de uma praça que “diz muito à alma de qualquer português”.
Das alterações mais importantes destaca-se a prevista ao nível da acessibilidade: um novo elevador fará a ligação do piso zero ao quarto piso do edifício, permitindo a qualquer visitante visitar todo o espaço sem limitações. Serão também feitas obras ao nível infra-estrutural, com vista a melhorar as condições de electricidade e ventilação de ar.
500 anos depois, mantém-se viva a memória e a importância de um edifício do qual nunca se desistiu. Atravessou a monarquia portuguesa, a ocupação espanhola e o Estado Novo, e é hoje celebrado, ainda no mesmo sítio, para que se conheça a sua história antes de nele se intervir.
Texto editado por Ana Fernandes