Faça você mesmo a encenação (deste Rossini)
Uma versão de concerto de La Gazza Ladra com um leque de cantores excelente, com destaque para a soprano Sofia Mchedlishvili, que parece ter nascido para fazer Rossini. A Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do São Carlos estiveram à altura das deliciosas diabruras musicais do compositor italiano.
As pegas são aves muito inteligentes, dizem. Esta pega de Rossini, que tem um fraquinho por objectos de prata, arma uma embrulhada tal com o simples roubo de uma colher que instala uma comédia musical completamente delirante. A eficácia teatral do libreto tem nesta versão de concerto de ser descoberta pelo público: faça você mesmo a encenação. Mas é na música que o delírio teatral rossiniano inventa uma língua só sua. E portanto vale na mesma a pena. Pena de ave, pois.
Num interessante ensaio do escritor e musicólogo Alessandro Baricco sobre Rossini, o autor diz que Rossini “atravessa as fronteiras de uma falsa língua natural e leva as personagens a cantar como máquinas ou pessoas desequilibradas”. La Gazza Ladra é um bom exemplo deste passar de fronteiras que Rossini realiza como um magnífico e delirante jogo musical: “Que barulho endiabrado! Oh, que doido varrido!”
As vozes estão ao centro, com a sua louca ornamentação que já não é um adereço à melodia “principal” (coloratura adicional), mas a maneira essencial e necessária de pôr em acção um ritmo (e uma nova linguagem) para as emoções, colocando as personagens em situações por vezes completamente disparatadas. É que a comédia sentimental de Rossini interessa-se menos pela caracterização psicológica das personagens do que pela aceleração emotiva da própria música, através do canto. E que cantores, nesta excelente versão de concerto apresentada agora no São Carlos!
Ninetta, claro, com uma espectacular Sofia Mchedlishvili, jovem soprano georgiana, que compreende bem – e sabe pôr em marcha – a máquina de cantar que se tem de ser para uma ópera assim. Desde a sua primeira intervenção, quando o coração ainda lhe bate de alegria, Mchedlishvili, foi exemplar no ritmo (aqui fundamental) e na afinação, com uma agilidade vocal invulgar e um belo timbre para esta Ninetta, criada acusada injustamente de furto e condenada à morte. Não foi ela, foi a maldita pega, está claro.
E tudo acabará em bem, com um last minute rescue, porque tem de ser: Rossini cozinha uma utopia de felicidade e alegria, ludicamente fazendo música e pondo as vozes a dizer tudo o que importa, mesmo que as palavras já não se entendam, de tão rápidas que têm de ser — o que interessa então é a própria brincadeira fonética (“Il nappo è di Pippo la pipa e la poppa...”) mais do que a procura de uma forma “natural”. Tudo é artificial, anti-natural, virtuosismo lúdico, quase bebedeira. Se há personagens verosímeis, reais, a música encarrega-se de as tornar loucas caixas de música desvairada, mas rigorosamente organizadas. E, subitamente, do maior artifício emerge a emoção, tão amarga e tão doce como pode ser o chocolate. Até nos esquecemos de que é de um roubo de uma colher que se trata, quando Gianetto (o tenor Michele Angelini) canta com voz desesperada “E eu que pensava que ela fosse a honestidade em pessoa!” Podíamos só rir, sim, rir à gargalhada, mas subitamente Rossini leva-nos para outro caminho.
Michele Angelini, de uma sobriedade impressionante (mas é possível ser “sóbrio” em Rossini?), com uma voz que faz o artifício parecer orgânico, teve momentos excelentes, como o espantoso dueto com Ninetta no segundo acto, “Caem-me as lágrimas”. Logo seguido de outro tocante dueto de amizade e compaixão, entre Ninetta e Pippo, a excelente contralto Paola Gardina, que até foi mais actriz do que se podia numa versão de concerto. E que soube mostrar que Rossini é gozo libertador e piscar de olho teatral, sem descurar a música.
Menos convincente foi Ugo Guagliardo no papel de Fernando, o pai de Ninetta, precisamente porque, apesar da sua impressionante potência vocal de baixo, lhe faltou a agilidade para transmitir o ritmo e o gozo. Muito bem estiveram Mirco Palazzi (um Magistrado que foi muito mais do que um mau da fita, deixando que as suas maldades machistas dessem ainda mais poder à personagem frágil e afinal forte que é Ninetta), Cátia Moreso (uma muito expressiva Lúcia e brilhante na sua ária de “arrependimento”), Luís Rodrigues (um Fabrizio muitíssimo seguro, rápido e cómico) Marco Alves dos Santos (espectacular nos seus dois pequenos papéis) bem como os outros “secundários” João Merino e André Henriques. Na verdade, principal há só uma, que é Ninetta. E Sofia Mchedlishvili mostrou que pode emocionar-nos até num recitativo sem interesse musical: “Ho bisogno di te”, diz ela a Pippo. É demasiado se cair uma lágrima?
Houve ainda um coro que esteve em grande desde o início: “Que dia feliz nós vamos passar!”. E assim foi a noite. A Orquestra Sinfónica Portuguesa (que nesta versão de concerto não estava no fosso mas no palco, pois claro) aguentou-se à bronca rossiniana, com uma boa direcção de Sesto Quatrini, que mostrou lindamente o que é o problema rítmico em Rossini e como a sua música pode inspirar ainda os compositores contemporâneos interessados na expansão da linguagem para novos territórios. Por exemplo numa aceleração de paixão, lágrimas, remorsos e desesperos, tudo em simultâneo, contra a “lei injusta” para dizer uma outra verdade na música. Mesmo que pareça um disparate completo, é brincadeira para levar a sério. Para chorar a rir, com coloratura!