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O resto da vida de “um actor esquecido” que, por acaso, representa “uma geração”

Um comediante decide parar de fazer vídeos e, durante um ano, gerir a carreira do “Kiko dos Morangos” que lhe foi entregar uma piza. O Resto da Tua Vida, disponível no YouTube, é uma série documental ou um mockumentary? A discussão já vai para além disso.

O primeiro dia do resto da vida do actor João André começou mais cedo do que Carlos Coutinho Vilhena antecipava. O “impacto real” de O Resto da Tua Vida foi a única coisa que o comediante não conseguiu calcular “ao pormenor” na websérie que criou e onde documenta a viagem de um “actor caído em esquecimento”, o “Kiko dos Morangos”, de volta às novelas portuguesas. Mas é só isto que a série, disponível no YouTube, faz?

O primeiro episódio abre com João André a entregar uma piza a Carlos Coutinho Vilhena, num apartamento em Lisboa. O comediante de 25 anos reconhece o actor pela personagem que encarnou em 2005 nos Morangos com Açúcar e, enquanto o vê a afastar-se numa mota de entregas ao domicílio, começa a pensar numa possível colaboração — “Puto, ele é uma cara”, comenta com um amigo, que não percebe o entusiasmo. Corta para um plano de João André, à frente de um fundo negro, a encarar a câmara: “Já ganhei 4500 euros num fim-de-semana e hoje”, engole em seco, “não ganho isso num ano”.

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Frame de O Resto da Tua Vida

A “personagem João André” — “que não deixo de ser eu, mas que está segmentada”, salvaguarda o próprio ao telefone com o P3 — é um jovem que pagou uma formação e ainda não conseguiu recuperar o valor investido em propinas. Que, para “se dar ao luxo de fazer teatro”, se atira a “trabalhos precários que não pagam rendas”. Como ele confessa, a certa altura, num dos episódios: “A verdade é que tenho 32 anos e tive de voltar para casa dos meus pais quando já vivia sozinho. Mas é a vida de actor.” Pausa. “De teatro.” E não só: é a vida de “toda uma geração precária”, reconhece. Ele é só uma das caras — que ainda por cima ficou conhecida pelo nome errado.

Passam-se 20 minutos e o episódio acaba à porta do antigo Colégio da Barra, o edifício amarelo que surge nos Morangos com Açúcar, a famosa série para adolescentes que vai voltar ainda este ano. Agora, vemos o comediante feito manager a confessar a um João André aparentemente emocionado que gostava de “o voltar a pôr na ribalta”. O episódio em que o humorista se compromete a gerir a carreira do actor durante um ano foi lançado no início de Abril. Conta com mais de 700 mil visualizações e 1600 comentários. Muitos deles questionam a veracidade da série que se apresenta como documental — “e é”, garante-nos Carlos Coutinho Vilhena. Mesmo que “brinque com o que é real e o que não é”.

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Frame de O Resto da Tua Vida

“Porque é que as pessoas têm essa dúvida? Por causa da narrativa e estrutura de série”, garante Carlos, ao telefone com o P3. “Ou seja, há um início, um problema, um conflito.” Como quando o actor se prepara para declamar um texto e o comediante, “pela piada”, lhe atira um piaçaba. João André, sentindo-se menosprezado, contra-ataca: “Eu posso não encher o Tivoli, e então? É por isso que aquilo que eu faço é mau?” E a série ameaçava chegar ao fim. Só para, dias depois, os vermos a fazer as pazes, ao vivo, no 5 para a Meia-Noite.

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Frame de O Resto da Tua Vida

Alguns “momentos de humor” já estavam pensados e foram filmados em mais do que um take, admite Carlos. Tal como há situações de tensão que foram provocadas, muitas das vezes sem o protagonista estar à espera. Muitos dos momentos de humor vivem da dicotomia entre um comediante bem-sucedido, que a dada altura leva um “actor precário, caído no esquecimento” a uma festa num iate, e um actor que acede à estratégia traçada, mas que preferia estar “nas tábuas” a ensaiar. No teatro, portanto.

A ideia partir de um humorista pode também contribuir para que muitos não vejam a série como um documentário, mas sim como um mockumentary (uma obra de ficção em registo de documentário). São as mesmas dúvidas que pairavam no início de programas como o Último a Sair e Odisseia, por exemplo. “A única diferença é que o meu, à partida, é mesmo real”, diz Carlos Coutinho Vilhena, confesso admirador de Bruno Nogueira. “E as pessoas, se calhar, têm ainda assim mais dúvidas do que tiveram a partir do terceiro episódio do Último a Sair. E isso também é bom.”

Esta primeira dúvida não se dissipa, mas ao longo da série vai dando lugar a outra: “Será que eles vão conseguir, será que não?”. Têm filmado todo o processo, desde as primeiras reuniões com managers, à estratégia de crescimento nas redes sociais e à típica mudança de visual. “E as coisas aconteceram rápido de mais. O objectivo era fazer com que o João passasse a ser uma figura que agora já é: num mês, ganhou 70 mil seguidores no Instagram, 50 mil num canal de YouTube”, enumera Carlos. Por causa de um dos dois vídeos humorísticos que já publicou no canal, em que confessa, a gozar, “10 coisas que ninguém contou dos Morangos”, o jornal com mais tiragem do país fez o seguinte título: “Ex-moranguito João André revela affair e orgias com Ana Zanatti”. 

Para gravar a série e gerir a carreira de João André, Carlos parou de fazer sketches para o YouTube durante um ano. Não “por ser boa pessoa”, ou “altruísta”, como o estão sempre a congratular, e querer ajudar o actor de quem gosta “genuinamente”. Se, em alguns momentos parecer “uma homenagem à classe dos actores ou às classes mais precárias”, então “tudo bem”. Mas ele não está interessado (para já) em “fazer humor de intervenção”.

O que o humorista quer é, primeiro, criar episódios onde “os momentos de humor sejam fortes e os momentos de emoção densos, tenham várias camadas e funcionem para vários tipos de público”; aproveitar para explorar o “gosto pela gestão de carreiras” e provar uma teoria: “que a gestão de talento é mais importante do que o próprio talento”. O objectivo final “é que ele consiga, pelo menos, ter um papel numa novela”, diz, embora ainda estejam “a tentar perceber se é isso mesmo que o João quer” ou se não “prefere ficar só nas redes e continuar com o teatro”.

Para João André, O Resto da Tua Vida começou exactamente por narrar esse processo, mas já evoluiu para uma série “que defende uma geração que vai à luta”. É daí que surge a Bruta, a companhia de teatro contemporâneo criada há dois anos por um grupo de oito jovens actores “saltimbancos” — ele é um deles. Na altura, trabalhava num hotel, outros no Starbucks, outros no Gordinnis. Foi como um grito de guerra: “Pá, estamos fartos de castings e audições que já estão escolhidas, estamos fartos de não podermos mostrar o nosso valor, então vamos nós criar o nosso espaço.”

Preparam-se agora para estrear a sétima produção. “Acho que o conseguimos fazer de uma forma muito rigorosa, com muito brio, muito amor e de uma forma muito bruta.” As reacções aos episódios — “um estrondo” que o apanhou de “surpresa” — vão sendo “vividas em directo, enquanto colectivo”, entre ensaios técnicos e espectáculos. Como “uma família” que assiste no sofá de casa. “São estas pequenas coisas”, lembra ele. “Se a felicidade existe, eu acho que a felicidade incide nestes momentos.” Longe das câmaras da televisão.

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