O novo carvão
Ao fazer compras online ou ao pôr um “like” no Facebook, expomos a nossa identidade e privacidade a uma reserva gigantesca de dados. Sim, há aí um enorme potencial para a humanidade. Mas há também uma série de ameaças para as quais temos de estar atentos. Sétimo de uma série de dez textos sobre os riscos da “revolução digital”.
No século XIX, no início da revolução industrial, um grupo secreto de trabalhadores ingleses da indústria têxtil, conhecido por ludistas, destruíam as novas máquinas que ameaçavam os seus postos de trabalho. No século XXI, o carvão foi substituído por robots e inteligência artificial: segundo os dados do Eurobarómetro, nove em cada dez portugueses considera que o novo carvão rouba – é mesmo este o verbo utilizado – os empregos existentes [1]. É a mais alta proporção de todos os países da União Europeia. Há mesmo razão para preocupação? Sim. E não.
Sim, porque aquilo que os robots conseguem fazer tem vindo a aumentar a passos largos. Tarefas que historicamente pareciam a salvo da automação, como serviços e trabalho intelectual especializado – por exemplo, a preparação da defesa de um arguido por um advogado –, estão agora mais expostas a esse risco, porque estas novas máquinas não se dedicam só a trabalho repetitivo mas também a reconhecer padrões e a aprender. E sim, porque as sociedades mais envelhecidas, como a portuguesa, serão mais afectadas.
Olhando para trás, em alguns países o impacto da robotização foi, de facto, negativo para o emprego e para os salários [2]. Quanto ao futuro, as estimativas sobre o número de empregos em risco de automação variam entre qualquer coisa como 10% e 50%. Tomando o mais pessimista dos cenários, estarão mesmo em risco metade dos empregos actuais? Muito provavelmente, não. Primeiro porque cada um de nós, no seu trabalho, desempenha um conjunto de tarefas – nem todas sujeitas a automação. É até possível que a automação das tarefas mais desagradáveis e rotineiras nos deixe tempo para tarefas mais complexas, trazendo satisfação profissional acrescida. Depois, porque a decisão de substituir ou complementar o trabalhador por um robot depende dos custos do trabalho por comparação aos custos da nova tecnologia. Mesmo empregos com elevado risco de automação não são necessariamente empregos extintos. E caso desapareça aquele posto de trabalho, é possível que sejam criados novos empregos, em resultado da expansão da actividade económica. Há agora menos carteiros mas muito mais engenheiros informáticos. Vagas anteriores de transformação tecnológica mostram que o efeito global pode não ser negativo.
Mas o impacto da tecnologia no mundo do trabalho extravasa muito a manutenção ou não dos nossos empregos. Começa mesmo antes de conseguirmos o emprego: os algoritmos assumem um papel cada vez mais relevante nos processos de recrutamento. Quando a empresa de compras online Amazon decidiu aplicar as técnicas de machine learning à selecção de candidatos, alimentou o algoritmo com os padrões de recrutamento dos dez anos anteriores. Resultado: ter sido, por exemplo, “capitã da equipa de vólei feminino” era um factor penalizado pelo software. Os padrões de discriminação do passado eram aprendidos pela máquina e replicados em futuras contratações. Quando os programadores retiraram informação de género dos dados fornecidos ao programa, o problema manteve-se. Diferenças subtis na linguagem usada por homens e mulheres nos seus currículos eram ainda captadas pelo algoritmo e usadas em favor dos primeiros. A Amazon acabou por abandonar o projecto, mas muitas outras empresas usam algoritmos deste tipo, que se alimentam da informação de menores salários e menor progressão na carreira das mulheres – e de outros grupos como os imigrantes ou as minorias étnicas – e que aprendem, assim, que estes grupos são piores contratações. Cathy O’Neil, responsável por uma empresa que audita este tipo de software e autora do livro Weapons of Math Destruction [3], esclarece que os dados são apenas o reflexo da nossa cultura. Reconhecê-lo será meio caminho andado para melhorar as ferramentas de contratação que podem perpetuar, e até exacerbar, discriminações do passado.
A inteligência artificial afecta também a qualidade dos nossos empregos. Cathy O’Neil descreve no mesmo livro como empresas como a McDonalds recorrem à inteligência artificial para desenhar escalas que maximizam os lucros e minimizam os custos com os trabalhadores. Esta prática traduz-se em horários dinâmicos, adaptados às flutuações diárias (como a maior afluência antes e depois de um grande jogo de futebol, e a substancial queda durante o jogo), que implicam alterações constantes nos horários dos trabalhadores, muitas vezes com notificações inferiores a uma semana, e com consequências severas nas suas rotinas básicas – como o sono ou a alimentação – e na sua vida familiar. Esta situação não é, felizmente, possível em todos os países mas alerta para os perigos da menor regulamentação laboral. O livre funcionamento do “mercado” não pode resolver este problema: o excesso de oferta dos trabalhadores menos qualificados e a proliferação destas práticas faz com que os empregados destas empresas não tenham verdadeiramente outra opção.
As práticas de controlo excessivo por parte de empresas como a Amazon têm também sido amplamente denunciadas na imprensa. James Bloodworth, que escreveu um livro sobre as condições de trabalho em empresas do Reino Unido com baixos salários [4], explica como o sistema disciplinar de pontos e a monitorização constante dos trabalhadores, potenciada pelas novas tecnologias, penaliza idas à casa de banho, conversas entre colegas, pequenos abrandamentos de ritmo ou mesmo faltas justificadas por doença. Trabalhar num armazém é uma tarefa árdua, mas os sistemas de controlo orwellianos que a tecnologia permite estabelecer são um golpe profundo num caminho que se quer ascendente quanto às condições de trabalho e ao respeito pela dignidade humana.
A tudo isto se juntam novas formas de emprego, potenciadas nomeadamente pelas novas plataformas digitais. Para Travis Kalanick, fundador da Uber, o futuro do trabalho é promissor, com mais liberdade, independência e flexibilidade. No entanto, nos países onde existe informação, os dados mostram que uma fatia relevante destes trabalhadores acaba por receber abaixo do salário mínimo. Em muitos casos, a autonomia individual é inexistente: as plataformas determinam preços e os detalhes do fornecimento do serviço e a liberdade traduz-se em horários de trabalho excessivamente longos, sem férias nem protecção na doença. Estamos a recriar, nas palavras da Organização Internacional do Trabalho, práticas laborais do século XIX, com gerações futuras de trabalhadores pagos ao dia.
Um dos maiores desafios que estas novas plataformas enfrentam é precisamente a rotação dos que para si trabalham. E aqui entra novamente a tecnologia. Plataformas como a Uber usam sistemas de auto-monitorização do desempenho dos trabalhadores, semelhantes aos usados em jogos de computador: sistemas de pontuação, níveis, desafios e recompensas. A joguificação pretende motivar os trabalhadores e mantê-los no sistema mas estes “jogos” são perniciosos de muitas maneiras e potenciam excessos, como demasiadas horas de trabalho, e a subjugação à ditadura do cliente, com o poder de classificar o serviço. São vários os relatos do impacto de uma única avaliação negativa, com trabalhadores a verem vedado ou dificultado o seu acesso a novos clientes.
O futuro da era do novo carvão não tem que ser negro nem mais desigual. Em alguns casos, tudo o que temos que fazer é garantir que a protecção laboral que existe é de facto aplicada a todos os trabalhadores, sem subterfúgios de pretensos ganhos de autonomia. Muitas das pessoas sujeitas às novas formas de emprego fazem-no de forma involuntária e por isso vemos sobre-representados os grupos mais desfavorecidos: os mais jovens, as mulheres, os imigrantes, os menos qualificados. O impacto da automação, se nada for feito, acentuará ainda mais estas desigualdades: será benéfico para os mais qualificados e para os detentores da tecnologia. Os dados da OCDE demonstram que são as pessoas mais expostas aos riscos da automação as que menor acesso têm à formação que lhe permitiria enfrentar a nova era digital [5].
Financiar estas necessidades de formação e encontrar novos mecanismos de protecção social que cheguem a todos tem um custo elevado, que não pode ser apenas responsabilidade do trabalhador. Exige uma partilha com empregadores e com o Estado. Nos Estados Unidos, Bernie Sanders sugere que as empresas cujos trabalhadores tenham necessidade de aceder a apoios sociais – pela inadequação dos seus salários – sejam sobretaxadas de modo a suportarem estes custos. Não será fácil, porque além dos desafios que já enfrentávamos com a difícil tributação das multinacionais, o digital veio pôr em causa um dos fundamentos dos nossos sistemas fiscais: as empresas não precisam de presença física num país para aí gerar receitas. Mas trouxe-nos também ferramentas ímpares para combatermos a fraude e a evasão.
Finalmente, não podemos abandonar o necessário reequilíbrio de forças entre empregadores e empregados. Isso passará por encontrar novas formas de assegurar a representação de todos os trabalhadores e por garantir um acesso justo ao mercado de trabalho. Passará também por políticas de concorrência que contrariem as tendências de concentração empresarial a que temos assistido, com os gigantes tecnológicos a adquirirem centenas de outras empresas e eliminando assim a concorrência. As escolhas que fizermos agora vão ser determinantes.
[1] Eurobarómetro Especial 460 de Maio de 2017
[2] Ver, por exemplo, o artigo de Daron Acemoglu e Pascual Restrepo de Março de 2017, “Robots and Jobs: Evidence from US Labor Markets” (https://www.nber.org/papers/w23285)
[3] https://weaponsofmathdestructionbook.com
[4] “Hired: Six Months Undercover in Low-Wage Britain”, publicado em Fevereiro de 2019 pela Atlantic Books
[5] http://www.oecd.org/employment/future-of-work/Skills-and-the-future-of-work.pdf