Queima: quando uns poucos incendeiam o todo
Dizia alguém de uma barraca à comunicação social: “Isto é assim todos os anos, os que vêm à Queima já vêm para isto.” Sim, vão à espera de diversão e, quem sabe, até de cometer algumas loucuras saudáveis. Mas sei que ninguém vai para a Queima à espera de consumir álcool dando o corpo ao manifesto com direito a gravação do momento e humilhação.
Sei que a Queima do Porto deste ano, tal como todas as que a antecederam, ficará na memória da maioria dos seus intervenientes pelos bons motivos e não pelos piores, aqueles que mancham um evento que anualmente marca a vida dos que chegam, dos que permanecem e dos que partem do mundo académico para o mundo do trabalho. E para que isto aconteça, a comunidade académica pode e deve exigir aos que organizam o evento uma logística apertada e altamente responsável.
Ano após ano, os pais merecem ter noites mais ou menos descansadas, sabendo que têm apenas de contar com o bom senso dos filhos que educaram, confiando assim neles. A Queima das Fitas não pode virar sinónimo de violência sexual normalizada e de selvajaria, um local onde a probabilidade de ocorrer um episódio marcante e traumatizante na vida de um estudante é elevada.
Este evento público que é, em si mesmo, um negócio não se pode dar ao luxo de vender álcool em troco de comportamentos que ferem a dignidade da pessoa humana, independentemente do género em questão. Todas aquelas frases sexistas gravadas nas paredes que, em primeira instância, até podem suscitar o nosso riso são na realidade formas da violência sexual normalizada que nos perseguiu a todos durante décadas a fio. Ninguém precisa de ser feminista para se incomodar com as mesmas. Espera-se daqueles que vão ser os profissionais do presente evolução e não retrocesso civilizacional.
Espera-se também que saibam filtrar as lutas académicas para os seus momentos devidos. Achei triste ver em pleno cortejo o Presidente da Câmara do Porto e o Reitor da Universidade do Porto abandonarem o evento por terem sido desrespeitados num momento solene que reúne estudantes e famílias e que é o oposto de um momento de reivindicação.
Com tudo isto, devemos salientar que entre adultos não deveria ser necessário existir um lápis azul para fazer um controlo barraca a barraca, no entanto não se pode esperar e não agir perante estas situações que envergonham o evento. Acredito que uma das funções primordiais das organizações político-académicas seja garantir que tudo corre bem, cumprindo os propósitos que justificam a existência da Queima, para além da venda de bilhetes.
Dizia alguém de uma barraca à comunicação social: “Isto é assim todos os anos, os que vêm à Queima já vêm para isto.” Sim, vão à espera de diversão e, quem sabe, até de cometer algumas loucuras saudáveis. Mas sei que ninguém vai para a Queima à espera de consumir álcool dando o corpo ao manifesto com direito a gravação do momento e humilhação.
É que eu também já por lá andei e recordo-me bem da diversão, da música popular, dos beijos e dos abraços, das pessoas novas que conheci e também, naturalmente, de ter bebido alguns shots aqui e ali, em troca do correspondente valor monetário. Ninguém diria que isto ocorreu num tempo relativamente recente porque naquele tempo ainda não se vivia a Queima de arma na mão por trás de uma barraca pronta a gravar tudo e todos, premindo o gatilho do bullying social a toda a hora e a todo o minuto nas redes sociais.
A esta pessoa que fez estas declarações quero dizer que esta realidade de que fala não é a Queima do meu tempo, não é a de hoje e espero que não venha a ser a do meu sobrinho bebé, ainda que de facto vivamos numa sociedade que tudo grava.
Concluo com uma trilogia essencial para homens e mulheres, que gostava sinceramente que rimasse tão bem quanto as frases que nos chegaram aos ouvidos directas das barracas dos futuros profissionais de Portugal:
- Quem não sabe beber álcool, não deve beber álcool.
- Quem não sabe respeitar o seu próprio corpo e sobretudo o entorno público em questão deve ser expulso desse espaço, independentemente do género.
- Quem não sabe beber álcool, chegando a situações de parca consciência, não tem naturalmente culpa de algum crime que possa ser cometido contra si e contra o seu corpo.